sábado, 29 de novembro de 2008

As Lições da Revolução

V. I. Lénine
Julho de 1917
Qualquer revolução significa uma viragem brusca na vida de massas imensas do povo. Se esta viragem não amadureceu, não pode dar-se uma verdadeira revolução. E tal como qualquer viragem na vida de qualquer indivíduo lhe ensina muitas coisas, lhe faz viver e sentir muitas coisas, assim a revolução dá a todo o povo, em pouco tempo, as lições mais profundas e preciosas.
Durante a revolução, milhões e dezenas de milhões de homens aprendem em cada semana mais do que num ano de vida habitual e sonolenta. Pois numa viragem brusca da vida de todo um povo vê-se com especial clareza quais são as classes do povo que perseguem tais ou tais objectivos, de que forças dispõem, com que meios actuam.
Todo o operário, soldado, camponês consciente deve meditar atentamente nas lições da revolução russa, sobretudo agora, no fim de Julho, quando se tornou claramente visível que a primeira fase da nossa revolução terminou com um fracasso.
I
Com efeito, vejamos o que procuravam alcançar as massas de operários e camponeses ao realizar a revolução. Que esperavam elas da revolução? É sabido que esperavam liberdade, paz, pão, terra.
E o que vemos hoje?
Em vez da liberdade começa-se a restaurar a anterior arbitrariedade. Implanta-se a pena de morte para os soldados na frente[N114], são levados aos tribunais os camponeses por se apoderarem por iniciativa própria das terras dos latifundiários. São saqueadas as tipografias dos jornais operários. São fechados sem julgamento os jornais operários. Os bolcheviques são presos, muitas vezes sem que contra eles se formule sequer acusação alguma, ou formulando acusações claramente caluniosas.
Objectar-se-á, talvez, que as perseguições aos bolcheviques não constituem um atentado à liberdade, pois só são perseguidas pessoas determinadas por acusações determinadas. Mas esta objecção é uma evidente e manifesta mentira; pois como é possível saquear uma tipografia e fechar jornais por delitos de determinadas pessoas, mesmo que essas acusações estejam provadas e reconhecidas pelo tribunal? Outra coisa seria se o governo reconhecesse como criminoso, por meio de uma lei, todo o partido dos bolcheviques, a sua própria orientação, as suas opiniões. Mas todos sabem que o governo da livre Rússia não podia fazer nem fez nada semelhante.
O que principalmente evidencia o carácter calunioso das acusações contra os bolcheviques é que os jornais dos latifundiários e capitalistas invectivavam com raiva os bolcheviques pela sua luta contra a guerra, contra os latifundiários e contra os capitalistas, e exigiam abertamente a prisão e a perseguição dos bolcheviques já quando nenhuma acusação contra nenhum bolchevique tinha sido ainda inventada.
O povo quer a paz. Mas o governo revolucionário da livre Rússia reiniciou a guerra de conquista na base dos mesmos tratados secretos estabelecidos pelo ex-tsar Nicolau II com os capitalistas ingleses e franceses, no interesse da pilhagem de outros povos pelos capitalistas russos. Estes tratados secretos continuam não publicados. O governo da livre Rússia limitou-se a subterfúgios, e não propôs uma paz justa a todos os povos.
Não há pão. A fome aproxima-se novamente. Toda a gente vê que os capitalistas e os ricos enganam vergonhosamente o tesouro com os fornecimentos de guerra (a guerra custa agora ao povo 50 milhões de rublos por dia), obtêm lucros inauditos com os preços altos, e absolutamente nada se faz para um controlo sério da produção e da distribuição dos produtos pelos operários. Os capitalistas tornam-se cada vez mais insolentes, põem os operários na rua, e isto no momento em que o povo sofre de falta de mercadorias.
Numa longa série de congressos, a imensa maioria dos camponeses declarou alta e claramente que considera a propriedade latifundiária da terra como uma injustiça e um roubo. E o governo, um governo que se chama a si próprio revolucionário e democrático, continua há meses a enganar os camponeses e a enchê-los de promessas e adiamentos. Durante meses os capitalistas não permitiram que o ministro Tchernov publicasse leis sobre a proibição da compra e venda da terra. E quando por fim foi promulgada essa lei, os capitalistas levantaram uma campanha infame e caluniosa contra Tchernov, e prosseguem esta campanha até hoje. O governo chegou a um tal descaramento na defesa dos latifundiários que começa a levar a tribunal os camponeses por se apoderarem das terras «por iniciativa própria».
Engana-se os camponeses, persuadindo-os a aguardar a Assembleia Constituinte. Mas os capitalistas continuam a adiar a convocação desta assembleia. Agora, quando, sob a pressão das exigências dos bolcheviques, esta convocação foi marcada para o dia 30 de Setembro, os capitalistas gritam abertamente que é um prazo curto, «impossível», exigem o adiamento da convocação da Assembleia Constituinte... Os membros mais influentes do partido dos capitalistas e latifundiários, do partido dos «democratas-constitucionalistas» ou partido da «liberdade do povo», Pánina por exemplo, pregam sem rodeios o adiamento da convocação da Assembleia Constituinte até ao fim da guerra.
Esperai pela terra até à Assembleia Constituinte. Esperai pela Assembleia Constituinte até ao fim da guerra. Esperai o fim da guerra até à vitória completa. Eis onde isto acaba. Os capitalistas e latifundiários, tendo a sua maioria no governo, zombam descaradamente dos camponeses.
II
Mas como é possível que isto aconteça num país livre, depois do derru-bamento do poder tsarista?
Num país não livre o povo é governado por um tsar e por um punhado de latifundiários, capitalistas e funcionários que ninguém elegeu.
Num país livre o povo é governado só por aqueles que ele mesmo designou para isso. Nas eleições o povo divide-se em partidos e, geralmente, cada classe da população forma o seu próprio partido, por exemplo, os latifundiários, os capitalistas, os camponeses, os operários, formam partidos próprios. Por isso nos países livres o governo do povo realiza-se por meio de uma luta aberta dos partidos e por meio dos acordos que estabelecem livremente entre si.
Depois do derrubamento do poder tsarista, em 27 de Fevereiro de 1917, a Rússia foi governada durante cerca de quatro meses como um país livre, isto é, pela luta aberta de partidos formados livremente e por meio de acordos estabelecidos livremente entre eles. Para compreender o desenvolvimento da revolução russa é preciso, portanto, antes de mais nada, estudar quais eram os partidos principais, os interesses de que classes eles defendiam, quais eram as relações de todos esses partidos entre si.
III
Depois do derrubamento do regime tsarista, o poder de Estado passou para as mãos do primeiro Governo Provisório. Ele era formado por representantes da burguesia, isto é, dos capitalistas, aos quais se tinham unido também os latifundiários. O partido dos «democratas-constitucionalistas», o principal partido dos capitalistas, ocupava o primeiro lugar como partido dirigente e governante da burguesia.
O poder não foi parar casualmente às mãos deste partido, apesar de não terem sido os capitalistas, naturalmente, mas os operários e os camponeses, os marinheiros e os soldados, que lutaram contra as tropas tsaristas, que derramaram o seu sangue pela liberdade. O poder foi parar às mãos do partido dos capitalistas porque esta classe tinha nas mãos a força da riqueza, da organização e do saber. Depois de 1905, e sobretudo durante a guerra, a classe dos capitalistas e dos latifundiários a eles aliados alcançou na Rússia os maiores êxitos no que se refere à sua organização.
O partido dos democratas-constitucionalistas foi sempre monárquico, tanto em 1905 como de 1905 a 1917. Depois da vitória do povo sobre a tirania tsarista, este partido declarou-se republicano. A experiência da história mostra que os partidos dos capitalistas, quando o povo vencia a monarquia, consentiam sempre em serem republicanos apenas para salvaguardar os privilégios dos capitalistas e a sua omnipotência sobre o povo.
Em palavras, o partido dos democratas-constitucionalistas defende a «liberdade do povo». De facto, defende os capitalistas, e todos os latifundiários, todos os monárquicos, todos os cem-negros, passaram imediatamente para o seu lado. A prova disto são a imprensa e as eleições. Todos os jornais burgueses e toda a imprensa cem-negrista depois da revolução cantam em coro com os democratas-constitucionalistas. Todos os partidos monárquicos, que não se atrevem a agir abertamente, apoiaram nas eleições, por exemplo em Petrogrado, o partido dos democratas-constitucionalistas.
Depois de se apossarem do poder governamental, os democratas--constitucionalistas orientaram todos os seus esforços no prosseguimento da guerra de conquista e de rapina começada pelo tsar Nicolau II, que tinha concluído tratados de rapina secretos com os capitalistas ingleses e franceses. Nesses tratados era prometido aos capitalistas russos que, em caso de vitória, poderiam apoderar-se de Constantinopla, da Galícia, da Arménia, etc. Mas quanto ao povo, o governo dos democratas-constitucionalistas limitou-se a ocas justificações e promessas, adiando todas as decisões sobre os assuntos mais importantes e de maior urgência para os operários e camponeses até à Assembleia Constituinte, não marcando prazo para a sua convocação.
Aproveitando a liberdade, o povo começou a organizar-se autonomamente. A principal organização dos operários e camponeses, que constituem a esmagadora maioria da população da Rússia, eram os Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses. Estes Sovietes começaram a formar-se já durante a Revolução de Fevereiro e, algumas semanas depois dela, na maioria das grandes cidades da Rússia e em muitos distritos, todos os elementos avançados e conscientes da classe operária e do campesinato estavam já unidos em Sovietes.
Os Sovietes foram eleitos de modo inteiramente livre. Os Sovietes eram as verdadeiras organizações das massas do povo, dos operários e camponeses. Os Sovietes eram as verdadeiras organizações da imensa maioria do povo. Os operários e camponeses, vestidos com o uniforme militar, estavam armados.
É desnecessário dizer que os Sovietes podiam e deviam tomar nas suas mãos todo o poder de Estado. Até à convocação da Assembleia Constituinte não deveria existir no país outro poder senão o dos Sovietes. Só então a nossa revolução se tornaria uma revolução verdadeiramente popular, verdadeiramente democrática. Só então as massas trabalhadoras, que aspiram realmente à paz, que não têm realmente nenhum interesse numa guerra de conquista, teriam podido começar a aplicar decidida e firmemente uma política que poria fim à guerra de conquista e conduziria à paz. Só então os operários e camponeses teriam podido pôr um freio aos capitalistas, que obtêm «na guerra» lucros fabulosos e que levaram o país à ruína e à fome. Mas nos Sovietes apenas uma pequena parte dos deputados estava ao lado do partido dos operários revolucionários, dos sociais-democratas bolcheviques, que exigiam a entrega de todo o poder de Estado aos Sovietes. A maior parte dos deputados dos Sovietes estava ao lado dos partidos dos sociais-democratas mencheviques e dos socialistas-revolucionários, que eram contra a entrega do poder aos Sovietes. Em lugar de eliminar o governo da burguesia e substituí-lo por um governo dos Sovietes, estes partidos defendiam o apoio ao governo da burguesia e o acordo com ele, a formação de um governo em conjunto com ele. Nesta política de acordos com a burguesia dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, nos quais a maioria do povo confiava, reside o conteúdo fundamental de todo o curso do desenvolvimento da revolução durante todos os cinco meses decorridos desde o seu início.
IV
Vejamos, antes de mais nada, como se desenvolveu essa política de acordos dos socialistas-revolucionários e mencheviques com a burguesia, e depois procuraremos explicar a circunstância de que a maioria do povo confiou neles.
V
A política de acordos dos mencheviques e socialistas-revolucionários com os capitalistas teve lugar, duma forma ou doutra, em todos os períodos da revolução russa.
No próprio fim de Fevereiro de 1917, mal o povo triunfou e foi derrubado o poder tsarista, o Governo Provisório dos capitalistas incluiu Kérenski na sua composição, como «socialista». Na realidade, Kérenski nunca foi socialista, foi apenas trudovique, e só se inscreveu nos «socialistas-revolucionários» em Março de 1917, quando isso já não era perigoso nem desvantajoso. Através de Kérenski, como vice-presidente do Soviete de Petrogrado, o Governo Provisório dos capitalistas preocupou-se imediatamente em atrair para si e domesticar o Soviete. O Soviete, isto é, os socialistas-revolucionários e mencheviques nele predominantes, deixou-se domesticar, aceitou, imediatamente depois de ser constituído o Governo Provisório dos capitalistas, «apoiá-lo» «na medida em que» ele cumprisse as suas promessas.
O Soviete considerava-se como o órgão encarregado de controlar e fiscalizar os actos do Governo Provisório. Os chefes do Soviete criaram a chamada «comissão de contacto», isto é, uma comissão para contacto, para ligação com o governo[N115]. Nesta comissão de contacto os chefes socialistas-revolucionários e mencheviques do Soviete mantinham-se constantemente em conversações com o governo dos capitalistas, vindo a ocupar, propriamente falando, a posição de ministros sem pasta ou ministros não oficiais.
Esta situação manteve-se durante todo o mês de Março e quase todo o mês de Abril. Os capitalistas actuavam por meio de protelações e subterfúgios, procurando ganhar tempo. Durante este período, o governo dos capitalistas não deu um só passo minimamente sério para desenvolver a revolução. O governo não fez absolutamente nada até para cumprir a sua tarefa imediata e directa, para convocar a Assembleia Constituinte, não levou a questão aos órgãos locais, nem sequer criou uma comissão central para a preparação deste assunto. O governo não tinha senão uma preocupação: renovar secretamente os tratados internacionais de rapina, que o tsar concluíra com os capitalistas da Inglaterra e da França, refrear o mais cautelosa e dissimuladamente possível a revolução, prometer tudo e não cumprir nada. Os socialistas-revolucionários e mencheviques desempenhavam na «comissão de contacto» o papel dos tolos a quem se alimenta com frases pomposas, com promessas, com os «volte amanhã». Os socialistas-revolucionários e mencheviques, como o corvo da conhecida fábula, rendiam-se às adulações e sentiam-se felizes ouvindo os capitalistas assegurar que tinham os Sovietes na mais alta estima e que não dariam um passo sem eles.
Na verdade ia passando o tempo e o governo dos capitalistas não fazia absolutamente nada pela revolução. Mas contra a revolução teve tempo, entretanto, de renovar os tratados secretos de rapina, ou melhor, de os confirmar e «reanimar» mediante negociações complementares e não menos secretas com os diplomatas do imperialismo anglo-francês. Contra a revolução teve tempo, entretanto, de lançar os alicerces de uma organização contra-revolucionária (ou pelo menos uma aproximação) dos generais e oficiais do exército de operações. Contra a revolução teve tempo de começar a organização dos industriais, fabricantes e empresários que, sob a pressão dos operários, eram forçados a fazer concessão após concessão, mas que começavam ao mesmo tempo a sabotar (arruinar) a produção e a preparar a sua paralisação, esperando para isso o momento propício.
Mas a organização dos operários e camponeses avançados nos Sovietes progredia constantemente. Os melhores elementos das classes oprimidas sentiam que o governo, apesar do seu acordo com o Soviete de Petrogrado, apesar da grandiloquência de Kérenski, apesar da «comissão de contacto», continuava a ser um inimigo do povo, um inimigo da revolução. As massas sentiam que, se não vencessem a resistência dos capitalistas, estavam irremediavelmente perdidas a causa da paz, a causa da liberdade, a causa da revolução. A impaciência e a exasperação cresciam nas massas.
VI
Esta rebentou em 20-21 de Abril. O movimento eclodiu espontaneamente, não preparado por ninguém. O movimento dirigia-se tão nitidamente contra o governo que um regimento avançou mesmo armado e se apresentou diante do palácio Maríinski para prender os ministros. Tornou-se para todos claro até à evidência que o governo não podia manter-se. Os Sovietes podiam (e deviam) tomar o poder nas suas mãos sem a menor resistência de qualquer lado. Em vez disso, os socialistas-revolucionários e mencheviques apoiaram o governo dos capitalistas que se afundava, enredaram-se ainda mais com a política de acordos com ele, deram passos ainda mais funestos que conduziam à ruína da revolução.
A revolução ensina todas as classes com uma rapidez e profundidade que não se verificam nunca em tempo normal, pacífico. Os capitalistas, melhor organizados, mais experientes em matéria de luta de classes e de política, aprenderam mais rapidamente do que os outros. Vendo que a posição do governo era insustentável, recorreram a um método que, no decorrer de toda uma série de decénios, desde 1848, foi praticado pelos capitalistas de outros países para enganar, dividir e enfraquecer os operários. Este método é o chamado ministério «de coligação», isto é, o ministério conjunto de unidade formado por burgueses e trânsfugas do socialismo.
Nos países em que a liberdade e a democracia coexistem há mais tempo com o movimento operário revolucionário, na Inglaterra e na França, os capitalistas aplicaram muitas vezes e com grande êxito este método. Os chefes «socialistas», entrando no ministério da burguesia, sempre foram testas-de-ferro, bonecos, biombos dos capitalistas, instrumentos para enganar os operários. Os capitalistas «democratas e republicanos» da Rússia puseram em prática este mesmo método. Os socialistas-revolucionários e mencheviques deixaram-se imediatamente enganar, e em 6 de Maio o ministério «de coligação», com a participação de Tchernov, Tseretéli e C.a, era um facto.
Os simplórios dos partidos socialista-revolucionário e menchevique exultavam, banhando-se enfatuadamente nos raios da fama ministerial dos seus chefes. Os capitalistas esfregavam as mãos de prazer, tendo obtido, na pessoa dos «chefes dos Sovietes», ajudantes contra o povo, tendo obtido a sua promessa de apoiar as «acções ofensivas na frente», isto é, o reinicio da guerra imperialista de rapina, que já estivera a ponto de ser interrompida. Os capitalistas conheciam toda a presunçosa impotência destes chefes, sabiam que as promessas por parte da burguesia — em relação ao controlo e mesmo à organização da produção, em relação à política de paz, etc. — nunca serão cumpridas.
Assim aconteceu. A segunda fase no desenvolvimento da revolução, de 6 de Maio até 9 ou até 18 de Junho, confirmou plenamente os cálculos dos capitalistas quanto à facilidade de enganar os socialistas-revolucionários e mencheviques.
Enquanto Pechekhónov e Skóbelev se enganavam a si próprios e ao povo com frases altissonantes de que tomariam 100% dos lucros aos capitalistas, de que a sua «resistência estava quebrada», etc, os capitalistas continuavam a fortalecer-se. Nada, absolutamente nada, foi feito, na realidade, durante todo este tempo, para dominar os capitalistas. Os ministros vindos dos trânsfugas do socialismo revelaram-se máquinas falantes para desviar os olhos das classes oprimidas, enquanto todo o aparelho de direcção estatal se encontrava de facto nas mãos da burocracia (do funcionalismo) e da burguesia. O famigerado Paltchínski, vice-ministro da Indústria, era o representante típico deste aparelho de governo, que entravava quaisquer possíveis medidas contra os capitalistas. Os ministros pairavam e tudo continuava como dantes.
Em particular, o ministro Tseretéli foi utilizado pela burguesia para lutar contra a revolução. Mandaram-no «apaziguar» Cronstadt, quando os revolucionários daí chegaram a tal ousadia que se atreveram a destituir o comissário nomeado[N116]. A burguesia abriu nos seus jornais uma campanha incrivelmente raivosa, maldosa e barulhenta de mentiras, calúnias e incitamentos contra Cronstadt, acusando-a do desejo de «separar-se da Rússia», repetindo esta e outras tolices em milhares de tons, aterrorizando a pequena burguesia e os filisteus. Tseretéli, o mais típico representante desses filisteus aterrorizados e obtusos, foi de todos o que mais «honestamente» mordeu o anzol da campanha burguesa, de todos o que mais zelosamente «esmagou e reprimiu» Cronstadt, não compreendendo o seu papel de lacaio da burguesia contra-revolucionária. Acabou por ser um instrumento da execução de um «acordo» com a Cronstadt revolucionária, segundo o qual o comissário em Cronstadt não seria nomeado pura e simplesmente pelo governo, mas eleito no local e confirmado pelo governo. Em miseráveis compromissos destes gastavam o tempo os ministros que haviam desertado do socialismo para a burguesia.
Lá onde nenhum ministro burguês podia aparecer em defesa do governo perante os operários revolucionários ou nos Sovietes, aparecia (mais exactamente: era enviado pela burguesia) um ministro «socialista», Skóbelev, Tseretéli, Tchernov, etc, que cumpria conscienciosamente a tarefa da burguesia, fazia tudo para defender o ministério, isentava de culpas os capitalistas, enganava o povo com a repetição de promessas, promessas e mais promessas, com conselhos para esperar, esperar e esperar.
O ministro Tchernov ocupava-se, em especial, em traficar com os seus colegas burgueses: mesmo até ao mês de Julho, até à nova «crise de poder» aberta depois do movimento de 3-4 de Julho, até à saída dos democratas--constitucionalistas do ministério, o ministro Tchernov ocupou-se constantemente da causa profundamente popular, interessante e útil de «persuadir» os seus colegas burgueses a que dessem o seu acordo pelo menos à proibição da compra e venda de terras. Esta proibição fora prometida do modo mais solene aos camponeses no Congresso (Soviete) de Deputados Camponeses de Toda a Rússia em Petrogrado[N117]. Mas a promessa não passou de promessa. Tchernov não pôde cumpri-la, nem em Maio nem em Junho, até ao próprio momento em que a onda revolucionária da erupção espontânea de 3-4 de Julho, coincidindo com a saída dos democratas-constitucionalistas do ministério, deu a possibilidade de aplicar essa medida. Mas mesmo então essa medida foi uma medida isolada, incapaz de introduzir uma séria melhoria na luta do campesinato contra os latifundiários pela terra.
Entretanto, na frente, o «democrata revolucionário» Kérenski, filiado à última hora no partido dos socialistas-revolucionários, cumpria com êxito e com brilho a tarefa contra-revolucionária imperialista de reiniciar a guerra imperialista de rapina, tarefa que Gutchkov, odiado pelo povo, não podia cumprir. Kérenski embriagava-se com a sua própria eloquência, os imperialistas incensavam-no, jogavam com ele como se fosse um peão de xadrez, adulavam-no, divinizavam-no — tudo isto porque servia com lealdade e honestidade os capitalistas, esforçando-se por que as «tropas revolucionárias» concordassem com o reinicio da guerra, que se travava em cumprimento dos tratados do tsar Nicolau II com os capitalistas da Inglaterra e da França, para que os capitalistas russos obtivessem Constantinopla e Lvov, Erzerum e Trebizonda.
Assim decorreu a segunda fase da revolução russa, de 6 de Maio até 9 de Junho. A burguesia contra-revolucionária fortaleceu-se e reforçou-se sob a cobertura e sob a protecção dos ministros «socialistas», preparando a ofensiva tanto contra o inimigo de fora como contra o de dentro, isto é, contra os operários revolucionários.
VII
O partido dos operários revolucionários, o partido bolchevique, preparava uma manifestação para 9 de Junho, em Petrogrado, a fim de dar expressão organizada ao descontentamento e à indignação irresistivelmente crescente das massas. Os chefes socialistas-revolucionários e mencheviques, enredados em acordos com a burguesia e ligados pela política imperialista da ofensiva, sentiram-se aterrorizados, vendo que perdiam influência sobre as massas. Ergueu-se uma gritaria geral contra a manifestação, gritaria na qual se uniam desta vez os democratas-constitucionalistas contra-revo-lucionários com os socialistas-revolucionários e mencheviques. Sob a sua direcção, em resultado da sua política de acordos com os capitalistas, definiu-se completamente, tornou-se extremamente evidente, a viragem das massas pequeno-burguesas para a aliança com a burguesia contra--revolucionária. Nisto reside o significado histórico, nisto reside o sentido de classe da crise de 9 de Junho.
Os bolcheviques cancelaram a manifestação, não tendo o menor desejo de lançar os operários numa luta desesperada, naquele momento, contra os democratas-constitucionalistas, os socialistas-revolucionários e mencheviques unidos. Porém, estes últimos, para conservar ainda um derradeiro resíduo de confiança das massas, viram-se obrigados a convocar uma manifestação geral para o dia 18 de Junho. A burguesia estava fora de si de raiva, vendo nisto, com razão, a vacilação da democracia pequeno-burguesa para o lado do proletariado, e decidiu paralisar a acção da democracia com a ofensiva na frente.
Com efeito, em 18 de Junho registou-se um triunfo extraordinariamente patente das palavras de ordem do proletariado revolucionário, das palavras de ordem do bolchevismo, entre as massas de Petersburgo, em 19 de Junho foi anunciado solenemente pela burguesia e pelo bonapartista(1*) Kérenski o começo da ofensiva na frente precisamente em 18 de Junho.
A ofensiva significava de facto o reinicio da guerra de rapina no interesse dos capitalistas e contra a vontade da imensa maioria dos trabalhadores. Por isso, à ofensiva estava ligado inevitavelmente, por um lado, um gigantesco reforço do chauvinismo e a passagem do poder militar (e, por conseguinte, também estatal) para uma camarilha militar de bonapartistas, e, por outro lado, a passagem à violência contra as massas, à perseguição dos internacionalistas, à supressão da liberdade de agitação, às prisões e fuzilamentos daqueles que são contra a guerra.
E se o dia 6 de Maio amarrou os socialistas-revolucionários e mencheviques com uma corda à carruagem triunfal da burguesia, o dia 19 de Junho prendeu-os com cadeias como servidores dos capitalistas.
VIII
A exasperação das massas, como é natural, cresceu com maior rapidez e força devido ao reinicio da guerra de rapina. Em 3-4 de Julho deu-se a erupção da sua indignação, erupção que os bolcheviques tentaram conter e à qual, naturalmente, deveriam esforçar-se por imprimir a forma mais organizada possível.
Os socialistas-revolucionários e mencheviques, como escravos da burguesia, acorrentados pelo seu senhor, concordaram com tudo: tanto com a chamada das tropas reaccionárias a Petrogrado como com o restabelecimento da pena de morte, com o desarmamento dos operários e das tropas revolucionárias, com as prisões, as perseguições, os encerramentos de jornais sem julgamento. O poder, que a burguesia no governo não podia tomar inteiramente e que os Sovietes não queriam tomar, o poder caiu nas mãos da clique militar, dos bonapartistas, apoiados em tudo, naturalmente, pelos democratas-constitucionalistas e pelos cem-negros, pelos latifundiários e capitalistas.
De degrau em degrau. Uma vez posto o pé no declive da política de acordos com a burguesia, os socialistas-revolucionários e mencheviques foram deslizando irresistivelmente até ao fundo do abismo. A 28 de Fevereiro prometeram no Soviete de Petrogrado um apoio condicional ao governo burguês. A 6 de Maio salvaram-no do colapso e deixaram-se converter em seus servidores e defensores, dando a sua concordância à ofensiva. A 9 de Junho uniram-se à burguesia contra-revolucionária na campanha de ódio desenfreado, mentiras e calúnias contra o proletariado revolucionário. A 19 de Junho deram consentimento ao reinicio, já efectivo, da guerra de rapina. A 3 de Julho concordaram com a chamada das tropas reaccionárias: era o começo da entrega definitiva do poder aos bonapartistas. De degrau em degrau.
Este fim tão vergonhoso dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques não é casual mas o resultado, muitas vezes confirmado pela experiência da Europa, da situação económica dos pequenos proprietários, da pequena burguesia.
IX
Toda a gente observou, naturalmente, como os pequenos proprietários fazem o possível e o impossível para «serem alguém», para chegarem a ser verdadeiros proprietários, para se elevarem à posição do proprietário «sólido», à posição da burguesia. Enquanto imperar o capitalismo, para o pequeno proprietário não há outra saída: ou passa ele próprio para a posição dos capitalistas (o que é possível, no melhor dos casos, só para um em cada cem pequenos proprietários), ou passa à situação do proprietário arruinado, do semiproletário e depois à do proletário. Assim acontece também na política: a democracia pequeno-burguesa, particularmente na figura dos seus chefes, arrasta-se atrás da burguesia. Os chefes da democracia pequeno-burguesa entretém as suas massas com promessas e afirmações sobre a possibilidade de acordo com os grandes capitalistas. No melhor dos casos, obtêm dos capitalistas, durante um curto período, concessõezinhas para uma pequena camada superior das massas trabalhadoras, enquanto em tudo o que é decisivo, em tudo o que é importante, a democracia pequeno-burguesa se encontra sempre na cauda da burguesia, como o seu apêndice impotente, como um instrumento submisso nas mãos dos reis da finança. A experiência da Inglaterra e da França confirmou isto muitas vezes.
A experiência da revolução russa, quando os acontecimentos, sobretudo sob a influência da guerra imperialista e da crise profundíssima por ela criada, se desenvolveram com uma rapidez extraordinária, esta experiência de Fevereiro a Julho de 1917 confirmou de modo particularmente vivo, de modo evidente, a velha verdade marxista da posição vacilante da pequena burguesia.
A lição da revolução russa é: não há, para as massas trabalhadoras, salvação das férreas tenazes da guerra, da fome, da escravização pelos latifundiários e capitalistas, senão na ruptura completa com os partidos dos socialistas-revolucionários e mencheviques, na clara consciência do seu papel de traidores, na renúncia a qualquer política de acordos com a burguesia, na passagem resoluta para o lado dos operários revolucionários. Os operários revolucionários são, se os camponeses pobres os apoiarem, os únicos que estão em condições de quebrar a resistência dos capitalistas, de levar o povo à conquista da terra sem indemnização, à plena liberdade, à vitória sobre a fome, à vitória sobre a guerra, a uma paz justa e duradoura.
POSFACIO
Este artigo foi escrito, como se deduz do seu texto, nos fins de Julho.
A história da revolução em Agosto confirmou plenamente as afirmações do artigo. Além disso, em fins de Agosto a insurreição de Kornílov [N118] imprimiu à revolução uma nova viragem, demonstrando palpavelmente a todo o povo que os democratas-constitucionalistas, em aliança com os generais contra-revolucionários, aspiram a dispersar os Sovietes e a restaurar a monarquia. Que força terá esta nova viragem da revolução? Conseguirá ela pôr fim à funesta política de acordos com a burguesia? O futuro próximo o dirá . . .
N. Lénine 6 de Setembro de 1917

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