"O objetivo final desta obra, diz Marx no seu prefácio a O Capital, é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna", isto é, da sociedade capitalista, da sociedade burguesa. O estudo das relações de produção de uma sociedade historicamente determinada e concreta no seu nascimento, desenvolvimento e declínio, tal é o conteúdo da doutrina econômica de Marx. O que domina na sociedade capitalista é a produção de mercadorias; por isso a análise de Marx começa pela análise da mercadoria.
O Valor
A mercadoria é, em primeiro lugar, uma coisa que satisfaz uma qualquer necessidade do homem; em segundo lugar, é uma coisa que se pode trocar por outra. A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca (ou simplesmente o valor) é, em primeiro lugar, a relação, a proporção na troca de um certo número de valores de uso de uma espécie contra um certo número de valores de uso de outra espécie. A experiência quotidiana mostra-nos que, através de milhões, de milhares de milhões de trocas deste tipo se comparam incessantemente os valores de uso mais diversos e mais díspares. Que há de comum entre estas coisas diferentes, que são tornadas constantemente equivalentes num determinado sistema de relações sociais? O que elas têm de comum é serem produtos do trabalho. Trocando os seus produtos, os homens criam relações de equivalência entre os mais diferentes gêneros de trabalho. A produção das mercadorias é um sistema de relações sociais no qual os diversos produtores criam produtos variados (divisão social do trabalho) e em que todos estes produtos se equiparam uns aos outros na troca. Por conseguinte, o que é comum a todas as mercadorias não é o trabalho concreto de um ramo de produção determinado, não é um trabalho de um gênero particular, mas o trabalho humano abstrato, o trabalho humano em geral. Numa dada sociedade, toda a força de trabalho representada pela soma dos valores de todas as mercadorias constitui uma só e mesma força de trabalho humano; milhares de milhões de atos de troca o demonstram. Cada mercadoria considerada isoladamente não representa portanto senão uma certa parte do tempo de trabalho socialmente necessário. A grandeza do valor é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário ou pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de determinada mercadoria, de determinado valor de uso. "Ao equiparar os seus diversos produtos na troca como valores, os homens equiparam os seus diversos trabalhos como trabalho humano. Não se dão conta, mas fazem-no." (27) O valor é uma relação entre duas pessoas, disse um velho economista; mas deveria acrescentar: uma relação entre pessoas escondida sob a envoltura das coisas. Só partindo do sistema de relações sociais de produção de uma formação histórica determinada, relações que se manifestam na troca, fenômeno generalizado que se repete milhares de milhões de vezes, é que se pode compreender o que é o valor. "Como valores, todas as mercadorias são apenas quantidades determinadas de tempo de trabalho cristalizado."(28)
Depois de uma análise detalhada do duplo caráter do trabalho incorporado nas mercadorias, Marx passa à análise da formado valor e do dinheiro. A principal tarefa que Marx se atribui é investigar a origem da forma dinheiro do valor, estudar o processo histórico do desenvolvimento da troca, começando pelos atos de troca particulares e fortuitos ("forma simples, particular ou acidental do valor: uma quantidade determinada de uma mercadoria é trocada por uma quantidade determinada de outra mercadoria), para passar à forma geral do valor, quando várias mercadorias diferentes são trocadas por outra mercadoria determinada e concreta sempre a mesma, e acabar na forma dinheiro do valor, quando o ouro se torna esta mercadoria determinada, o equivalente geral. Produto supremo do desenvolvimento da troca e da produção de mercadorias, o dinheiro encobre e dissimula o caráter social dos trabalhos parciais, a ligação social entre diversos produtores unidos uns aos outros pelo mercado. Marx submete a uma análise extremamente minuciosa as diversas funções do dinheiro, e é especialmente importante notar que também aqui (como nos primeiros capítulos de O Capital) a forma abstrata de exposição que, por vezes, parece puramente dedutiva, reproduz na realidade uma documentação imensamente rica sobre a história do desenvolvimento da troca e da produção de mercadorias. "O dinheiro supõe certo nível de troca de mercadorias. As formas particulares do dinheiro, simples equivalente de mercadorias, meio de circulação, meio de pagamento, tesouro ou dinheiro universal, indicam, conforme o diferente alcance e a preponderância relativa de uma dessas funções, graus muito diversos do processo social de produção" (0 Capital, I)(29)
A Mais Valia
Num certo grau do desenvolvimento da produção de mercadorias, o dinheiro transforma-se em capital. A fórmula da circulação de mercadorias era: M (mercadoria) - D (dinheiro) - M (mercadoria), isto é, venda de uma mercadoria para a compra de outra. Pelo contrário, a fórmula geral do capital é: D - M - D, isto é, compra para a venda (com lucro). E a este acréscimo do valor primitivo do dinheiro posto em circulação que Marx chama mais-valia. Este "acréscimo" do dinheiro na circulação capitalista é um fato conhecido de todos. E precisamente este "acréscimo" que transforma o dinheiro em capital, ou seja, numa relação social de produção historicamente determinada. A mais-valia não pode provir da circulação das mercadorias, porque esta só conhece a troca de equivalentes, nem tão pouco pode provir de um aumento dos preços porque as perdas e os lucros recíprocos dos compradores e dos vendedores equilibrar-se-iam; trata-se de um fenômeno social médio, generalizado, e não de um fenômeno individual. Para obter a mais-valia "seria preciso que o possuidor do dinheiro descobrisse no mercado uma mercadoria cujo valor de uso fosse dotado da propriedade singular de ser fonte de valor"(30), uma mercadoria cujo processo de consumo fosse, ao mesmo tempo, um processo de criação de valor. E esta mercadoria existe: é a força de trabalho humana. O seu uso é o trabalho, e o trabalho cria valor. O possuidor de dinheiro compra a força de trabalho pelo seu valor, que, como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção (isto é, pelo custo da manutenção do operário e da sua família). Tendo comprado a força de trabalho, o possuidor do dinheiro fica com o direito de a consumir, isto é, de a obrigar a trabalhar durante um dia inteiro, suponhamos durante doze horas. Mas em seis horas (tempo de trabalho "necessário"), o operário cria um produto que cobre as despesas da sua manutenção, e durante as outras seis horas (tempo de trabalho "suplementar"), cria um "sobreproduro" não retribuído pelo capitalista, que constitui a mais-valia. Por conseguinte, do ponto de vista do processo de produção é necessário distinguir duas partes do capital: o capital constante, investido nos meios de produção (máquinas, instrumentos de trabalho, matérias-primas, etc.), cujo valor passa sem modificação (de uma só vez ou por partes) para o produto acabado, e o capital variável, que é investido para pagar a força de trabalho. O valor deste capital não se conserva invariável; antes aumenta no processo do trabalho, criando mais-valia. Assim, para exprimir o grau de exploração da força de trabalho pelo capital temos de comparar a mais-valia não com o capital total, mas unicamente com o capital variável. A taxa de mais-valia, nome dado por Marx a essa relação, seria, no nosso exemplo, de 6/6 ou de 100%.
A condição histórica para o aparecimento do capital reside, em primeiro lugar, na acumulação de uma certa soma de dinheiro nas mãos de certas pessoas num estádio de desenvolvimento da produção de mercadorias em geral já relativamente elevado; em segundo lugar, na existência de operários "livres" sob dois aspectos - livres de quaisquer entraves ou restrições para venderem a sua força de trabalho, e livres por não terem terras nem meios de produção em geral -, de operários sem qualquer propriedade, de operários "proletários" que não podem subsistir senão vendendo a sua força de trabalho.
O aumento da mais-valia é possível graças a dois processos fundamentais: o prolongamento da jornada de trabalho ("mais-valia absoluta") e a redução do tempo de trabalho necessário ("mais-valia relativa"). Marx, analisando o primeiro processo, traça um quadro grandioso da luta da classe operária pela redução da jornada de trabalho e da intervenção do poder de Estado primeiro para a prolongar (séculos XIV a XVII) e depois para a diminuir (legislação fabril do século XIX). Depois da publicação de O Capital, a história do movimento operário, em todos os países civilizados do mundo, forneceu milhares e milhares de novos fatos que ilustram esse quadro.
Na sua análise da produção da mais-valia relativa, Marx estuda as três etapas históricas fundamentais no processo de intensificação da produtividade do trabalho pelo capitalismo: 1 - cooperação simples; 2 - a divisão do trabalho e a manufatura; 3 - as máquinas e a grande indústria. A profundidade com que a análise de Marx revela os traços fundamentais e típicos do desenvolvimento do capitalismo aparece, entre outras coisas, no fato de o estudo da chamada indústria artesanal russa fornecer materiais muito abundantes para ilustrar as duas primeiras dessas três etapas. Quanto à ação revolucionadora da grande indústria mecanizada, descrita por Marx em 1867, manifestou-se, durante o meio século decorrido desde então, em vários países "novos" (Rússia, Japão, etc.).(31)
Continuemos. O que há de novo e extremamente importante em Marx e a análise da acumulação do capital, isto é, da transformação de uma parte da mais-valia em capital e do seu emprego não para satisfazer as necessidades pessoais ou os caprichos do capitalista, mas para voltar a produzir. Marx assinalou o erro de toda a economia política clássica anterior (desde Adam Smith), segundo a qual toda a mais-valia que se convertia em capital passava a fazer parte do capital variável. Enquanto, na realidade, ela se decompõe em meios de produção e em capital variável. O crescimento mais rápido da parte do capital constante (no montante total do capital) em relação à parte do capital variável tem, no processo de desenvolvimento do capitalismo e da sua transformação em socialismo, uma importância primordial.
Acelerando a substituição dos operários pelas máquinas e criando a riqueza num pólo e a miséria no outro, a acumulação do capital gera assim o chamado "exército de reserva do trabalho", o "excedente relativo" de operários ou "superpopulação capitalista", que se reveste de formas extremamente variadas e dá ao capital a possibilidade de ampliar muito rapidamente a produção. Esta possibilidade, combinada com o crédito e a acumulação de capital em meios de produção, dá-nos, entre outras coisas, a explicação das crises de superprodução que aparecem periodicamente nos países capitalistas, a princípio aproximadamente de dez em dez anos, depois com intervalos menos próximos e menos fixos. Impõe-se a distinção entre a acumulação do capital na base do capitalismo e a chamada acumulação primitiva, quando se desapossa violentamente o trabalhador dos meios de produção, se expulsa o camponês das suas terras, se roubam às terras comunais, e imperam o sistema colonial e o sistema das dívidas públicas, as tarifas alfandegárias protecionistas, etc. A "acumulação primitiva" cria, num pólo, o proletário "livre", no outro, o detentor do dinheiro, o capitalista.
A "tendência histórica da acumulação capitalista" é caracterizada por Marx nestes termos célebres: "A expropriação dos produtores diretos faz-se com o vandalismo mais impiedoso e sob a pressão das paixões mais infames, mais ignóbeis, mesquinhas e odiosas. A propriedade privada, ganha como trabalho pessoal" (do camponês e do artesão), "e que o indivíduo livre criou, identificando-se de certo modo com os instrumentos e as condições do seu trabalho, é substituída pela propriedade privada capitalista que assenta na exploração do trabalho de outrem, o qual não tem mais que uma aparência de liberdade ... O que se trata agora de expropriar não é já o operário que explora ele próprio a sua própria propriedade, mas o capitalista que explora numerosos operários. Esta expropriação efetua-se pelo jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista mata muitos outros. E paralelamente a esta centralização, isto é, à expropriação de muitos capitalistas por alguns, desenvolve-se, numa escala cada vez maior e mais ampla, a forma cooperativa do processo de trabalho, desenvolve-se a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração sistemática do solo, a transformação dos meios de trabalho em meios que não podem ser utilizados senão em comum, a economia de todos os meios de produção pela sua utilização como meios de produção de um trabalho social combinado, a incorporação de todos os povos na rede do mercado mundial e, por conseguinte, o caráter internacional do regime capitalista. À medida que diminui constantemente o numero dos magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce no seu conjunto a miséria, a opressão, a escravidão, a degeneração, a exploração; mas também aumenta, ao mesmo tempo, a revolta da classe operária, que é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se o entrave do modo de produção que se desenvolveu com ele e graças a ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista, que acaba por rebentar. Soa a última hora da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são por sua vez expropriados." (O Capital, I 13.)
Outro ponto extraordinariamente importante e novo é a análise feita por Marx no tomo lide O Capital da reprodução do capital social tomado no seu conjunto. Também aqui, ele considera não um fenômeno individual, mas um fenômeno geral, não uma fração da economia social, mas a economia na sua totalidade. Corrigindo o erro atrás mencionado dos economistas clássicos, Marx divide toda a produção social em duas grandes secções: (1) produção de meios de produção e (II) produção de artigos de consumo; e examina em pormenor, com o apoio de dados numéricos, a circulação do capital social no seu conjunto, tanto na reprodução simples como na acumulação. No tomo III de O Capital resolve-se, de acordo com a lei do valor, o problema da formação da taxa média de lucro. Um imenso progresso foi alcançado na ciência econômica pelo fato de a análise de Marx partir de fenômenos econômicos gerais, do conjunto da economia social, e não de casos isolados ou das manifestações superficiais da concorrência, aos quais se limita geralmente a economia política vulgar ou a moderna "teoria da utilidade marginal" (32). Marx analisa primeiro a origem da mais-valia e passa em seguida à sua decomposição em lucro, juro e renda da terra. O lucro é a relação entre a mais-valia e o conjunto do capital investido numa empresa. O capital de "elevada composição orgânica" (isto é, em que o capital constante ultrapassa o capital variável em proporções superiores à média social) dá uma taxa de lucro inferior à média. O capital de "baixa composição orgânica" dá uma taxa de lucro superior à média. A concorrência entre os capitais, a sua livre passagem de um ramo para outro, reduzem, em ambos os casos, a taxa de lucro à taxa média. A soma dos valores de todas as mercadorias numa dada sociedade coincide com a soma dos preços das mercadorias, mas, em cada empresa e em cada ramo de produção tomado à parte, sob influência da concorrência, as mercadorias são vendidas não pelo seu valor, mas pelo preço de produção, que é igual ao capital investido, mais o lucro médio.
Assim, a diferença entre o preço e o valor e a igualização do lucro, fatos incontestáveis e conhecidos de todos, são perfeitamente explicados por Marx com base na lei do valor, porque a soma dos valores de todas as mercadorias coincide com a soma dos seus preços. Mas a redução do valor (social) aos preços (individuais) não se dá de forma simples e direta; segue uma via muito complicada; é absolutamente natural que, numa sociedade de produtores de mercadorias dispersos, apenas ligados uns aos outros pelo mercado, as leis que regem essa sociedade não possam exprimir-se senão através de resultados médios, sociais, gerais, pela compensação recíproca dos desvios individuais num ou noutro sentido.
O aumento da produtividade do trabalho significa um crescimento mais rápido do capital constante em relação ao capital variável. Ora, sendo a mais-valia função apenas do capital variável, compreende-se que a taxa de lucro (a relação entre a mais-valia e todo o capital, e não apenas entre a mais-valia e a parte variável do capital) tenha tendência para baixar. Marx analisa minuciosamente esta tendência, assim como as diversas circunstâncias que a ocultam ou a contrariam. Sem nos determos na exposição dos interessantíssimos capítulos do tomo III, consagrados ao capital usurário, ao capital comercial e ao capital-dinheiro, abordaremos o essencial: a teoria da renda da terra. Sendo a superfície do solo limitada e estando, nos países capitalistas, inteiramente ocupada por proprietários particulares, o custo de produção dos produtos da terra é determinado pelos gastos de produção, não nos terrenos de qualidade média, mas nos da pior qualidade, e pelas condições de transporte (não médias, mas pelas mais desfavoráveis) dos produtos para o mercado. A diferença entre este preço e o preço de produção num terreno de qualidade superior (ou em melhores condições) constitui a renda diferencial. Graças a uma análise pormenorizada desta renda, em que demonstra que ela provém da diferença da fertilidade dos terrenos e da diferença dos capitais investidos na cultura, Marx põe em evidência (ver igualmente as Teorias da Mais-Valia, onde a crítica a Rodbertus merece uma atenção particular) o erro de Ricardo ao pretender que a renda diferencial só se obtém pela conversão gradual dos melhores terrenos em terrenos de qualidade inferior. Pelo contrário, transformações inversas produzem-se igualmente: terrenos de uma categoria transformam-se em terrenos de outra categoria (em virtude do progresso da técnica agrícola, do crescimento das cidades, etc.) e a famosa "lei da fertilidade decrescente do solo" é um profundo erro que atribui à natureza os defeitos, as limitações e as contradições do capitalismo. Além disso, a igualdade do lucro, em todos os ramos da indústria e da economia nacional em geral, supõe uma liberdade completa de concorrência, a liberdade de transferir o capital de um ramo para outro. Mas a propriedade privada da terra cria um monopólio que é um obstáculo a essa livre transferência. Devido a esse monopólio, os produtos de uma agricultura que se distingue por uma baixa composição orgânica do capital e que, por conseguinte, dá uma taxa de lucro individual mais elevada, não entram no livre jogo de igualização da taxa de lucro: o proprietário agrícola, que detém o monopólio da terra, pode manter o preço acima da média; este preço de monopólio dá origem à renda absoluta. A renda diferencial não pode ser abolida em regime capitalista; mas, ao contrário, a renda absoluta pode sê-lo, por exemplo, com a nacionalização da terra quando esta passa a propriedade do Estado. Esta passagem da terra para o Estado significaria a supressão do monopólio dos proprietários agrícolas, uma liberdade de concorrência mais conseqüente e mais completa na agricultura. E por isso que, diz Marx, os burgueses radicais, mais do que uma vez na história, formularam esta reivindicação burguesa progressiva da nacionalização da terra que todavia apavora a maior parte da burguesia, porque "toca" de demasiado perto um outro monopólio que atualmente é muito mais importante e "sensível": o monopólio dos meios de produção em geral. (Esta teoria do lucro médio sobre o capital e da renda absoluta da terra foi exposta por Marx numa linguagem extraordinariamente popular, concisa e clara na sua carta a Engels de 2 de Agosto de 1862. Ver Correspondência, t. III, pp. 77-8 1. Ver também a sua carta de 9 de Agosto de 1862, ibid, pp. 86-87). Importa igualmente assinalar, na história da renda da terra, a análise em que Marx demonstra a transformação da renda em trabalho (quando o camponês, trabalhando na terra do senhor, cria um sobreproduto) em renda em produtos ou renda em espécie (quando o camponês cria na sua própria terra um sobreproduto que entrega ao proprietário em virtude de uma "coerção extra-econômica"), depois em renda em dinheiro (que é a renda em espécie transformada em dinheiro - na Rússia antiga o obrok - em virtude do desenvolvimento da produção de mercadorias) e, finalmente, em renda capitalista quando o camponês é substituído pelo empresário agrícola, que cultiva a terra com a ajuda do trabalho assalariado. Relativamente a esta análise da "gênese da renda capitalista da terra", notemos uma série de idéias profundas de Marx (particularmente importantes para os países atrasados, tais como a Rússia) sobre a evolução do capitalismo na agricultura. "Com a transformação da renda em espécie em renda em dinheiro constitui-se necessariamente, ao mesmo tempo, e mesmo anteriormente, uma classe de jornaleiros não possuidores que trabalham a troco de um salário. Enquanto esta classe se constitui e enquanto se manifesta apenas esporadicamente, os camponeses abastados, sujeitos ao pagamento de uma renda, adquirem naturalmente o hábito de explorar por sua própria conta assalariados agrícolas, assim como no regime feudal os servos abastados tinham por sua vez outros servos ao seu serviço. Daqui resultou para eles a possibilidade de juntar, pouco a pouco, uma certa fortuna e de se transformarem em futuros capitalistas. Entre os antigos possuidores da terra que a exploram independentemente, cria-se assim um viveiro de rendeiros capitalistas, cujo desenvolvimento é condicionado pelo desenvolvimento geral da produção capitalista fora da agricultura (0 Capital, III2, p. 332). "A expropriação e a expulsão da aldeia de uma parte da população camponesa não só "libertam" para o capital industrial os operários, os seus meios de subsistência e os seus instrumentos de trabalho, como lhe criam, além disso, o mercado interno" (O Capital, I2, p. 778) (33). A pauperização e a ruína da população camponesa influem, por sua vez, na formação do exército de reserva do trabalho para o capital. Em todos os países capitalistas, "uma parte da população dos campos esta constantemente em vias de transformar-se em população urbana ou manufatureira (isto é, não agrícola). Esta fonte de superpopulação relativa corre continuamente ... Por conseguinte, o operário agrícola está reduzido ao mínimo de salário e tem sempre um pé no pântano do pauperismo" (O Capital, I2, p. 668) (34). A propriedade privada do camponês da terra que ele próprio cultiva constitui a base da pequena produção, a condição da sua prosperidade e do seu desenvolvimento na forma clássica. Mas esta pequena produção só é compatível com um quadro estreito, primitivo, da produção e da sociedade. Em regime capitalista, "a exploração dos camponeses só pela forma se distingue da exploração do proletariado industrial. O explorador é o mesmo: o capital. Os capitalistas tomados isoladamente exploram os camponeses isoladamente pela hipoteca e a usura. A classe capitalista explora a classe camponesa por meio dos impostos do Estado" (As Lutas de Classes em França) (35). "A parcela do camponês já não é mais do que o pretexto que permite ao capitalista tirar da terra lucro, juro e renda e deixar ao próprio camponês a preocupação de arranjar como puder o seu salário" (O 18 Brumário) (36). Normalmente, o camponês entrega mesmo à sociedade capitalista, isto é, à classe capitalista, uma parte do seu salário e desce assim "ao nível do rendeiro irlandês, tudo isto sob a aparência de proprietário privado" (As Lutas de Classes em França) (37). Qual é "uma das razões que fazem com que, nos países em que a propriedade parcelaria predomina, o preço do trigo seja menos elevado que nos países de modo de produção capitalista"? (O Capital, III2, p. 340). E que o camponês entrega gratuitamente à sociedade (isto é, à classe capitalista) uma parte do sobreproduto. "Estes baixos preços (do trigo e dos outros produtos agrícolas) resultam, portanto, da pobreza dos produtores, e não da produtividade do seu trabalho" (O Capital, t. III2, p. 340). Em regime capitalista, a pequena propriedade agrícola, forma normal da pequena produção, degrada-se, é destruída e desaparece. "Pela sua natureza, a propriedade parcelaria é incompatível com o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho, as formas sociais do trabalho, a concentração social dos capitais, a criação de gado em grande escala, a utilização progressiva da ciência. A usura e o sistema fiscal arruínam-na necessariamente em toda à parte. O capital investido na compra da terra é subtraído ao cultivo." Dispersão infinita dos meios de produção e disseminação dos próprios produtores. (As cooperativas, isto é, as associações de pequenos camponeses, que desempenham um extraordinário papel progressivo burguês, só podem atenuar esta tendência, sem entretanto a suprimir; é preciso não esquecer também que estas cooperativas dão muito aos camponeses abastados, mas muito pouco ou quase nada à massa dos camponeses pobres, e que tais associações acabam por explorar elas próprias o trabalho assalariado.) "Desperdício enorme de força humana. A deterioração progressiva das condições de produção e o encarecimento dos meios de produção são a lei necessária da propriedade parcelaria." (38) Na agricultura como na indústria, a transformação capitalista da produção produz-se ao preço do "martirológio dos produtores". "A disseminação dos operários agrícolas em grandes extensões quebra a sua força de resistência, enquanto a concentração aumenta a dos operários das cidades. Tal como na indústria moderna, o aumento da força produtiva e a mais rápida mobilização do trabalho na agricultura capitalista moderna só se obtêm pela destruição e esgotamento da própria força de trabalho. Além disso, todo o progresso da agricultura capitalista não é apenas um progresso da arte de esgotar o operário, mas também de esgotar o solo ... A produção capitalista não desenvolve portanto a técnica e a combinação do processo social de produção senão desgastando, ao mesmo tempo, as fontes de toda a riqueza: a terra e o operário." (O Capital, I, fim do 13.º capítulo.)
O Socialismo
Pelo exposto, vê-se que Marx conclui pela transformação inevitável da sociedade capitalista em sociedade socialista a partir única e exclusivamente da lei econômica do movimento da sociedade moderna. A socialização do trabalho - que avança cada vez mais rapidamente sob múltiplas formas e que, no meio século decorrido depois da morte de Marx, se manifesta sobretudo pela extensão da grande indústria, dos cartéis, dos sindicatos, dos trusts capitalistas e também pelo aumento imenso das proporções e do poderio do capital financeiro - , eis a principal base material para o advento inelutável do socialismo. O motor intelectual e moral, o agente físico desta transformação, é o proletariado, educado pelo próprio capitalismo. A sua luta contra a burguesia, revestindo-se de formas diversas e de conteúdo cada vez mais rico, torna-se inevitavelmente uma luta política tendente à conquista pelo proletariado do poder político ("ditadura do proletariado"). A socialização da produção não pode conduzir senão à transformação dos meios de produção em propriedade social, à "expropriação dos expropriadores". O aumento enorme da produtividade do trabalho, a redução da jornada de trabalho, a substituição dos vestígios, das ruínas, da pequena produção primitiva e disseminada, pelo trabalho coletivo aperfeiçoado, tais são as conseqüências diretas desta transformação. O capitalismo rompe definitivamente a ligação da agricultura com a indústria, mas prepara simultaneamente, pelo seu desenvolvimento a um nível superior, elementos novos desta ligação, a união da indústria com a agricultura na base de uma aplicação consciente da ciência, de uma coordenação do trabalho coletivo, de uma nova distribuição da população (pondo fim tanto ao isolamento do campo, ao seu estado de abandono e atraso cultural, como à aglomeração antinatural de uma enorme população nas grandes cidades). As formas superiores do capitalismo moderno criam condições para uma nova forma da família, novas condições para a mulher e para a educação das novas gerações; o trabalho das mulheres e das crianças, a dissolução da família patriarcal pelo capitalismo, tomam inevitavelmente, na sociedade moderna, as formas mais horríveis, mais miseráveis e repugnantes. Contudo, "a grande indústria, pelo papel decisivo que confere às mulheres, aos jovens e as crianças dos dois sexos nos processos de produção socialmente organizadas e fora da esfera familiar, cria urna nova base econômica para uma forma superior da família e das relações entre ambos os sexos. E, naturalmente, tão absurdo considerar como absoluta a forma germano-cristã da família como as antigas formas romana, grega ou oriental, que constituem, de resto, uma só linha de desenvolvimento histórico. E igualmente evidente que a composição do pessoal operário por indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades - que na sua forma primária, brutal, capitalista, em que o operário existe para o processo de produção, e não o processo de produção para o operário, constitui uma fonte envenenada de ruína e de escravidão - deve transformar-se, inevitavelmente, em condições adequadas, numa fonte de progresso humano" (O Capital, fim do 13.º capítulo). O sistema fabril mostra-nos "o germe da educação do futuro, que unirá, para todas as crianças acima de certa idade, o trabalho produtivo ao ensino e à ginástica, não só como método de aumento da produção social, mas também como único método capaz de produzir homens desenvolvidos em todos os aspetos" (Ibid.) E sobre a mesma base histórica que o socialismo de Marx coloca os problemas da nacionalidade e do Estado, não só para explicar o passado, mas também para prever ousadamente o futuro e conduzir uma ação audaciosa para a sua realização. As nações são um produto e uma forma inevitável da época burguesa do desenvolvimento social. A classe operária não pode fortalecer-se, amadurecer, formar-se, "sem se organizar no quadro da nação", sem ser "nacional" ("embora de nenhuma maneira no sentido burguês da palavra"). Ora, o desenvolvimento do capitalismo destrói cada vez mais as fronteiras nacionais, acaba com o isolamento nacional, substitui os antagonismos nacionais por antagonismos de classe. Por isso, nos países capitalistas desenvolvidos é perfeitamente verdadeiro que "os operários não têm pátria" e que a sua "ação unitária, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições da sua libertação" (Manifesto do Partido Comunista). O Estado, essa violência organizada, surgiu como algo inevitável numa determinada fase do desenvolvimento da sociedade, quando esta, dividida em classes irreconciliáveis, não teria podido subsistir sem um "poder" aparentemente colocado acima dela e diferenciado até certo ponto dela. Nascido dos antagonismos de classe, o Estado torna-se "o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, a qual, por meio dele, se torna também à classe politicamente dominante e adquire assim novos meios para reprimir e explorar a classe oprimida. Assim, o Estado antigo era, acima de tudo, o Estado dos escravistas, para manter os escravos submetidos o Estado feudal era o órgão de que se valia a nobreza para sujeitar os camponeses servos, e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. (Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, obra em que o autor expõe as suas idéias e as de Marx.) Mesmo a forma mais livre e progressiva do Estado burguês, a república democrática, de maneira alguma elimina este fato; ela modifica apenas a sua forma (ligação do governo com a Bolsa, corrupção direta e indireta dos funcionários e da imprensa, etc.). O socialismo, conduzindo à supressão das classes, conduz por isso mesmo à abolição do Estado. "O primeiro ato - escreve Engels no seu Anti-Dúhring - em que o Estado atua efetivamente como representante de toda a sociedade - a expropriação dos meios de produção em nome de toda a sociedade - é, ao mesmo tempo, o seu último ato independente como Estado. A intervenção do poder de Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num domínio após outro, e cessará então por si mesma. O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direção do processo de produção. O Estado não é "abolido", extingue-se." "A sociedade, que reorganizará a produção na base de uma associação livre de produtores iguais, enviará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe corresponderá então: museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze." (F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.)
Finalmente, relativamente à posição do socialismo de Marx quanto ao pequeno camponês, que subsistirá na época da expropriação dos expropriadores, interessa citar esta passagem de Engels, que exprime o pensamento de Marx: "Quando nós estivermos na posse do poder de Estado, não poderemos pensar em expropriar pela violência os pequenos camponeses (com ou sem indenização), como seremos obrigados a fazer com os grandes proprietários. A nossa missão para com os camponeses consistirá antes de mais nada em encaminhar a sua produção individual e a sua propriedade privada para um regime cooperativo, não pela força, mas sim pelo exemplo, oferecendo-lhes para este efeito a ajuda da sociedade. Teremos então certamente meios de sobra para apresentar ao pequeno camponês a perspectiva das vantagens que 1á hoje lhe têm de ser mostradas." (F. Engels, A Questão Camponesa na França e na Alemanha(39), edição de Alexéiev, p. 17. A tradução russa contém erros. Ver o original em Die Neue Zeit.)
Tácticas da Luta de Classe do Proletariado
Marx, depois de, já em 1844-1845, ter posto a descoberto um dos defeitos principais do antigo materialismo, que consistia em não compreender as condições nem apreciar a importância da ação revolucionária prática, dedicou, durante toda a sua vida, paralelamente aos trabalhos teóricos, uma atenção contínua às questões da tática da luta de classe do proletariado. Todas as obras de Marx fornecem, a este respeito, uma rica documentação, particularmente a sua correspondência com Engels, publicada em 4 volumes, em 1913. Esta correspondência está longe ainda de estar toda recolhida, classificada, estudada e analisada. Por isso teremos de nos limitar forçosamente aqui às observações mais gerais e mais breves, acentuando que, para Marx, o materialismo despojado de este aspecto, era, e com razão, um materialismo incompleto, unilateral e sem vida. Marx determinou a tarefa essencial da tática do proletariado na sua rigorosa conformidade com todas as premissas da sua concepção materialista-dialética do mundo. Só o conhecimento objetivo do conjunto de relações de todas as classes, sem exceção, de uma dada sociedade e, por conseguinte, o conhecimento do grau objetivo de desenvolvimento desta sociedade e das relações entre ela e as outras sociedades, pode servir de base a uma tática justa da classe de vanguarda. Além disso, todas as classes e países são considerados não no seu aspecto estático, mas no dinâmico, isto é, não no estado de imobilidade, mas em movimento (movimento cujas leis derivam das condições econômicas de existência de cada classe). O movimento é, por sua vez, considerado não só do ponto de vista do passado, mas também do ponto de vista do futuro, e não segundo a concepção vulgar dos "evolucionistas", que só vêem lentas transformações, mas de forma dialética." Nos grandes processos históricos, vinte anos equivalem a um dia - escrevia Marx a Engels - ainda que em seguida possam apresentar-se dias que concentram em si vinte anos." (Correspondência, t. III, p. 127.)(40) Em cada grau do seu desenvolvimento, em cada momento, a tática do proletariado deve ter em conta esta dialética objetivamente inevitável da história da humanidade: por um lado, utilizando as épocas de estagnação política, ou da chamada evolução "pacífica", que caminha a passos de tartaruga, para desenvolver a consciência, a força e a capacidade de luta da classe de vanguarda; por outro, orientando todo este trabalho de utilização para o "objetivo final" dessa classe, tornando-a capaz de resolver praticamente as grandes tarefas ao chegarem os grandes dias "que concentram em si vinte anos". Duas considerações de Marx interessam particularmente a este respeito. Uma, na Miséria da Filosofia, refere-se à luta econômica e às organizações econômicas do proletariado; a outra, no Manifesto do Partido Comunista, é relativa às tarefas políticas do proletariado. A primeira diz assim." A grande indústria concentra num único local uma multidão de pessoas, desconhecidas umas das outras. A concorrência divide os seus interesses. Mas a defesa do salário, este interesse comum que eles têm contra o patrão, une-os no mesmo pensamento de resistência, de coalizão ... As coalizões, inicialmente isoladas, constituem-se em grupos, e, face ao capital sempre unido, a manutenção da associação torna-se para eles mais importante que a defesa do salário ... Nesta luta - verdadeira guerra civil - reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários para a batalha futura. Uma vez chegada a este ponto, a coalizão toma um caráter político." (41) Temos aqui o programa e a tática da luta econômica do movimento sindical para algumas dezenas de anos, para todo o longo período de preparação das forças do proletariado para "batalha futura". Deve-se comparar isto com os numerosos exemplos extraídos da correspondência de Marx e Engels e que estes colheram do movimento operário inglês, mostrando como a "prosperidade" industrial suscita tentativas de "comprar o proletariado" (Correspondência com Engels, t. p.136)(42), de desviá-lo da luta; como esta prosperidade geralmente "desmoraliza os operários" (III, 218); como o proletariado inglês "se aburguesa", como "a nação mais burguesa de todas" (a nação inglesa) "parece que quereria vir a ter, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês" (II, 290)42 como "a energia revolucionária" desaparece nele (III, 124);(43) como será preciso esperar mais ou menos tempo que os operários ingleses "se desembaracem da sua aparente contaminação burguesa" (III, 127); como "o ardor dos cartistas" (44) falta ao movimento operário inglês (1866; III, 305)(45) como os dirigentes operários ingleses se tornam um tipo intermédio "entre a burguesia radical e o operariado" (alusão a Holyoake, IV, 209); como, em virtude do monopólio da Inglaterra e enquanto esse monopólio subsistir, "não haverá nada a fazer com o operário inglês" (IV, 433)(46). A tática da luta econômica em relação com a marcha geral (e com o resultado) do movimento operário é ai examinada de uma maneira admiravelmente ampla, universal, dialética e verdadeiramente revolucionária.
O Manifesto do Partido Comunista estabelece o seguinte principio do marxismo como postulado da tática da luta política: "Lutam eles [os comunistas] pela realização de objetivos e de interesses imediatos da classe operaria, mas representam no movimento presente também o futuro do movimento".(47) Por isso, Marx apoiou em 1848, na Polônia, o partido da "revolução agrária", "o mesmo partido que fomentou a insurreição de Cracóvia de 1846,"(48) Em 1848-1849, Marx apoiou na Alemanha a democracia revolucionária extrema, sem que nunca se retratasse do que então disse sobre tática. Considerava a burguesia alemã como um elemento "inclinado desde o início a trair o povo" (só a aliança com os camponeses teria permitido à burguesia atingir inteiramente os seus fins) e "a concluir compromissos com os representantes coroados da velha sociedade". Eis a análise final dada por Marx da posição de classe da burguesia alemã na época da revolução democrática burguesa, análise que é um modelo do materialismo que encara a sociedade em movimento e, certamente, não considera unicamente o lado do movimento que olha para trás: "... sem fé em si mesma, sem fé no povo, resmungando contra os de cima, tremendo diante dos de baixo; ...espavorida diante da tempestade mundial; nunca com energia, e sempre com plágio; ... sem iniciativa; ... um velho maldito, condenado, no seu próprio interesse senil, a dirigir os primeiros impulsos de um povo jovem e robusto (Nova Gazeta Renana, 1848, ver Literarischer Nachlass, III, p. 212.)(49) Uns vinte anos mais tarde, numa carta a Engels (III, 224), Marx escrevia que a razão do fracasso da revolução de 1848 foi à burguesia ter preferido a paz na escravidão à simples perspectiva de combater pela liberdade. Quando acabou a época revolucionária de 1848-1849, Marx opôs-se aos que se obstinavam em continuar a jogar à revolução (luta contra Schapper e Willich), exigindo que se soubesse trabalhar na nova época que preparava, sob uma "paz" aparente, novas revoluções. A seguinte apreciação de Marx sobre a situação na Alemanha nos tempos da mais negra reação, no ano de 1856, mostra em que sentido pedia Marx que esse trabalho fosse orientado: "Na Alemanha tudo dependerá da possibilidade de apoiar a revolução proletária com uma espécie de segunda edição da guerra camponesa." (Correspondência, II, 108.)(50) Enquanto não acabou na Alemanha a revolução democrática (burguesa), Marx votou roda a atenção, em matéria de tática do proletariado socialista, ao desenvolvimento da energia democrática dos camponeses. Pensava que a atitude de Lassaíle era "objetivamente uma traição para com o movimento operário, em benefício da Prússia" (III, 210); entre outras razões porque ele se mostrava demasiado complacente para com os latifundiários e para com o nacionalismo prussiano. "Num país agrário, é uma baixeza - escrevia Engels em 1865, no decurso de uma troca de opiniões com Marx a propósito de uma projetada declaração comum para a imprensa - atacar, em nome do proletariado industrial, unicamente a burguesia, sem mesmo fazer a alusão á patriarcal "exploração à paulada" a que os operários rurais se vêem submetidos pela nobreza feudal." (III, 217.)(51) No período de 1864 a 1870, quando chegava ao fim a época da revolução democrática burguesa na Alemanha, a época em que as classes exploradoras da Prússia e da Áustria disputavam acerca dos meios para terminar esta revolução por cima, Marx não se limitou a condenar Lassalle pelos seus namoros com Bismarck, corrigia também Liebknecht, que tinha caído na "austrofilia" e defendia o particularismo; Marx exigia uma tática revolucionária que combatesse tão implacavelmente Bismarck como os "austrófilos", uma tática que não se acomodasse ao "vencedor", o junker prussiano, mas recomeçasse imediatamente a luta revolucionária contra ele, inclusivamente no terreno criado pelas vitórias militares da Prússia (Correspondência com Engels, III, pp. 134, 136, 147, 179, 204, 210, 215, 418, 437, 440~441.)(52) No apelo célebre da Internacional de 9 de Setembro de 1870, Marx punha em guarda o proletariado francês contra uma insurreição prematura, mas quando, apesar de tudo, ela se produziu (1871), saudou com entusiasmo a iniciativa revolucionária das massas que "tomam o céu de assalto" (carta de Marx a Kugelmann)(53). A derrota da ação revolucionária, nesta situação como em muitas outras, era, do ponto de vista do materialismo dialético em que se situava, um mal menor na marcha geral e no resultado da luta proletária do que teria sido o abandono das posições já conquistadas, a capitulação sem combate; uma tal capitulação teria desmoralizado o proletariado e minado a sua combatividade. Apreciando em todo o seu justo valor o emprego dos meios legais de luta em período de estagnação política e de domínio da legalidade burguesa, Marx condenou vigorosamente, em 1877 e 1878, depois da promulgação da lei de exceção contra os socialistas(54),a "frase revolucionária" de um Most; mas combateu com a mesma emergia, se não mais, também o oportunismo que então se tinha apoderado temporariamente do partido social-democrata oficial, que não tinha sabido dar imediatas provas de firmeza, de tenacidade, de espírito revolucionário e de prontidão, em resposta à lei de exceção, a passar à luta ilegal (Cartas de Marx a Engels, r. IV, pp. 397, 404, 418, 422, 42455 ver igualmente as cartas de Marx a Sorge).(55)
O Valor
A mercadoria é, em primeiro lugar, uma coisa que satisfaz uma qualquer necessidade do homem; em segundo lugar, é uma coisa que se pode trocar por outra. A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca (ou simplesmente o valor) é, em primeiro lugar, a relação, a proporção na troca de um certo número de valores de uso de uma espécie contra um certo número de valores de uso de outra espécie. A experiência quotidiana mostra-nos que, através de milhões, de milhares de milhões de trocas deste tipo se comparam incessantemente os valores de uso mais diversos e mais díspares. Que há de comum entre estas coisas diferentes, que são tornadas constantemente equivalentes num determinado sistema de relações sociais? O que elas têm de comum é serem produtos do trabalho. Trocando os seus produtos, os homens criam relações de equivalência entre os mais diferentes gêneros de trabalho. A produção das mercadorias é um sistema de relações sociais no qual os diversos produtores criam produtos variados (divisão social do trabalho) e em que todos estes produtos se equiparam uns aos outros na troca. Por conseguinte, o que é comum a todas as mercadorias não é o trabalho concreto de um ramo de produção determinado, não é um trabalho de um gênero particular, mas o trabalho humano abstrato, o trabalho humano em geral. Numa dada sociedade, toda a força de trabalho representada pela soma dos valores de todas as mercadorias constitui uma só e mesma força de trabalho humano; milhares de milhões de atos de troca o demonstram. Cada mercadoria considerada isoladamente não representa portanto senão uma certa parte do tempo de trabalho socialmente necessário. A grandeza do valor é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário ou pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de determinada mercadoria, de determinado valor de uso. "Ao equiparar os seus diversos produtos na troca como valores, os homens equiparam os seus diversos trabalhos como trabalho humano. Não se dão conta, mas fazem-no." (27) O valor é uma relação entre duas pessoas, disse um velho economista; mas deveria acrescentar: uma relação entre pessoas escondida sob a envoltura das coisas. Só partindo do sistema de relações sociais de produção de uma formação histórica determinada, relações que se manifestam na troca, fenômeno generalizado que se repete milhares de milhões de vezes, é que se pode compreender o que é o valor. "Como valores, todas as mercadorias são apenas quantidades determinadas de tempo de trabalho cristalizado."(28)
Depois de uma análise detalhada do duplo caráter do trabalho incorporado nas mercadorias, Marx passa à análise da formado valor e do dinheiro. A principal tarefa que Marx se atribui é investigar a origem da forma dinheiro do valor, estudar o processo histórico do desenvolvimento da troca, começando pelos atos de troca particulares e fortuitos ("forma simples, particular ou acidental do valor: uma quantidade determinada de uma mercadoria é trocada por uma quantidade determinada de outra mercadoria), para passar à forma geral do valor, quando várias mercadorias diferentes são trocadas por outra mercadoria determinada e concreta sempre a mesma, e acabar na forma dinheiro do valor, quando o ouro se torna esta mercadoria determinada, o equivalente geral. Produto supremo do desenvolvimento da troca e da produção de mercadorias, o dinheiro encobre e dissimula o caráter social dos trabalhos parciais, a ligação social entre diversos produtores unidos uns aos outros pelo mercado. Marx submete a uma análise extremamente minuciosa as diversas funções do dinheiro, e é especialmente importante notar que também aqui (como nos primeiros capítulos de O Capital) a forma abstrata de exposição que, por vezes, parece puramente dedutiva, reproduz na realidade uma documentação imensamente rica sobre a história do desenvolvimento da troca e da produção de mercadorias. "O dinheiro supõe certo nível de troca de mercadorias. As formas particulares do dinheiro, simples equivalente de mercadorias, meio de circulação, meio de pagamento, tesouro ou dinheiro universal, indicam, conforme o diferente alcance e a preponderância relativa de uma dessas funções, graus muito diversos do processo social de produção" (0 Capital, I)(29)
A Mais Valia
Num certo grau do desenvolvimento da produção de mercadorias, o dinheiro transforma-se em capital. A fórmula da circulação de mercadorias era: M (mercadoria) - D (dinheiro) - M (mercadoria), isto é, venda de uma mercadoria para a compra de outra. Pelo contrário, a fórmula geral do capital é: D - M - D, isto é, compra para a venda (com lucro). E a este acréscimo do valor primitivo do dinheiro posto em circulação que Marx chama mais-valia. Este "acréscimo" do dinheiro na circulação capitalista é um fato conhecido de todos. E precisamente este "acréscimo" que transforma o dinheiro em capital, ou seja, numa relação social de produção historicamente determinada. A mais-valia não pode provir da circulação das mercadorias, porque esta só conhece a troca de equivalentes, nem tão pouco pode provir de um aumento dos preços porque as perdas e os lucros recíprocos dos compradores e dos vendedores equilibrar-se-iam; trata-se de um fenômeno social médio, generalizado, e não de um fenômeno individual. Para obter a mais-valia "seria preciso que o possuidor do dinheiro descobrisse no mercado uma mercadoria cujo valor de uso fosse dotado da propriedade singular de ser fonte de valor"(30), uma mercadoria cujo processo de consumo fosse, ao mesmo tempo, um processo de criação de valor. E esta mercadoria existe: é a força de trabalho humana. O seu uso é o trabalho, e o trabalho cria valor. O possuidor de dinheiro compra a força de trabalho pelo seu valor, que, como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção (isto é, pelo custo da manutenção do operário e da sua família). Tendo comprado a força de trabalho, o possuidor do dinheiro fica com o direito de a consumir, isto é, de a obrigar a trabalhar durante um dia inteiro, suponhamos durante doze horas. Mas em seis horas (tempo de trabalho "necessário"), o operário cria um produto que cobre as despesas da sua manutenção, e durante as outras seis horas (tempo de trabalho "suplementar"), cria um "sobreproduro" não retribuído pelo capitalista, que constitui a mais-valia. Por conseguinte, do ponto de vista do processo de produção é necessário distinguir duas partes do capital: o capital constante, investido nos meios de produção (máquinas, instrumentos de trabalho, matérias-primas, etc.), cujo valor passa sem modificação (de uma só vez ou por partes) para o produto acabado, e o capital variável, que é investido para pagar a força de trabalho. O valor deste capital não se conserva invariável; antes aumenta no processo do trabalho, criando mais-valia. Assim, para exprimir o grau de exploração da força de trabalho pelo capital temos de comparar a mais-valia não com o capital total, mas unicamente com o capital variável. A taxa de mais-valia, nome dado por Marx a essa relação, seria, no nosso exemplo, de 6/6 ou de 100%.
A condição histórica para o aparecimento do capital reside, em primeiro lugar, na acumulação de uma certa soma de dinheiro nas mãos de certas pessoas num estádio de desenvolvimento da produção de mercadorias em geral já relativamente elevado; em segundo lugar, na existência de operários "livres" sob dois aspectos - livres de quaisquer entraves ou restrições para venderem a sua força de trabalho, e livres por não terem terras nem meios de produção em geral -, de operários sem qualquer propriedade, de operários "proletários" que não podem subsistir senão vendendo a sua força de trabalho.
O aumento da mais-valia é possível graças a dois processos fundamentais: o prolongamento da jornada de trabalho ("mais-valia absoluta") e a redução do tempo de trabalho necessário ("mais-valia relativa"). Marx, analisando o primeiro processo, traça um quadro grandioso da luta da classe operária pela redução da jornada de trabalho e da intervenção do poder de Estado primeiro para a prolongar (séculos XIV a XVII) e depois para a diminuir (legislação fabril do século XIX). Depois da publicação de O Capital, a história do movimento operário, em todos os países civilizados do mundo, forneceu milhares e milhares de novos fatos que ilustram esse quadro.
Na sua análise da produção da mais-valia relativa, Marx estuda as três etapas históricas fundamentais no processo de intensificação da produtividade do trabalho pelo capitalismo: 1 - cooperação simples; 2 - a divisão do trabalho e a manufatura; 3 - as máquinas e a grande indústria. A profundidade com que a análise de Marx revela os traços fundamentais e típicos do desenvolvimento do capitalismo aparece, entre outras coisas, no fato de o estudo da chamada indústria artesanal russa fornecer materiais muito abundantes para ilustrar as duas primeiras dessas três etapas. Quanto à ação revolucionadora da grande indústria mecanizada, descrita por Marx em 1867, manifestou-se, durante o meio século decorrido desde então, em vários países "novos" (Rússia, Japão, etc.).(31)
Continuemos. O que há de novo e extremamente importante em Marx e a análise da acumulação do capital, isto é, da transformação de uma parte da mais-valia em capital e do seu emprego não para satisfazer as necessidades pessoais ou os caprichos do capitalista, mas para voltar a produzir. Marx assinalou o erro de toda a economia política clássica anterior (desde Adam Smith), segundo a qual toda a mais-valia que se convertia em capital passava a fazer parte do capital variável. Enquanto, na realidade, ela se decompõe em meios de produção e em capital variável. O crescimento mais rápido da parte do capital constante (no montante total do capital) em relação à parte do capital variável tem, no processo de desenvolvimento do capitalismo e da sua transformação em socialismo, uma importância primordial.
Acelerando a substituição dos operários pelas máquinas e criando a riqueza num pólo e a miséria no outro, a acumulação do capital gera assim o chamado "exército de reserva do trabalho", o "excedente relativo" de operários ou "superpopulação capitalista", que se reveste de formas extremamente variadas e dá ao capital a possibilidade de ampliar muito rapidamente a produção. Esta possibilidade, combinada com o crédito e a acumulação de capital em meios de produção, dá-nos, entre outras coisas, a explicação das crises de superprodução que aparecem periodicamente nos países capitalistas, a princípio aproximadamente de dez em dez anos, depois com intervalos menos próximos e menos fixos. Impõe-se a distinção entre a acumulação do capital na base do capitalismo e a chamada acumulação primitiva, quando se desapossa violentamente o trabalhador dos meios de produção, se expulsa o camponês das suas terras, se roubam às terras comunais, e imperam o sistema colonial e o sistema das dívidas públicas, as tarifas alfandegárias protecionistas, etc. A "acumulação primitiva" cria, num pólo, o proletário "livre", no outro, o detentor do dinheiro, o capitalista.
A "tendência histórica da acumulação capitalista" é caracterizada por Marx nestes termos célebres: "A expropriação dos produtores diretos faz-se com o vandalismo mais impiedoso e sob a pressão das paixões mais infames, mais ignóbeis, mesquinhas e odiosas. A propriedade privada, ganha como trabalho pessoal" (do camponês e do artesão), "e que o indivíduo livre criou, identificando-se de certo modo com os instrumentos e as condições do seu trabalho, é substituída pela propriedade privada capitalista que assenta na exploração do trabalho de outrem, o qual não tem mais que uma aparência de liberdade ... O que se trata agora de expropriar não é já o operário que explora ele próprio a sua própria propriedade, mas o capitalista que explora numerosos operários. Esta expropriação efetua-se pelo jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista mata muitos outros. E paralelamente a esta centralização, isto é, à expropriação de muitos capitalistas por alguns, desenvolve-se, numa escala cada vez maior e mais ampla, a forma cooperativa do processo de trabalho, desenvolve-se a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração sistemática do solo, a transformação dos meios de trabalho em meios que não podem ser utilizados senão em comum, a economia de todos os meios de produção pela sua utilização como meios de produção de um trabalho social combinado, a incorporação de todos os povos na rede do mercado mundial e, por conseguinte, o caráter internacional do regime capitalista. À medida que diminui constantemente o numero dos magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce no seu conjunto a miséria, a opressão, a escravidão, a degeneração, a exploração; mas também aumenta, ao mesmo tempo, a revolta da classe operária, que é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se o entrave do modo de produção que se desenvolveu com ele e graças a ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista, que acaba por rebentar. Soa a última hora da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são por sua vez expropriados." (O Capital, I 13.)
Outro ponto extraordinariamente importante e novo é a análise feita por Marx no tomo lide O Capital da reprodução do capital social tomado no seu conjunto. Também aqui, ele considera não um fenômeno individual, mas um fenômeno geral, não uma fração da economia social, mas a economia na sua totalidade. Corrigindo o erro atrás mencionado dos economistas clássicos, Marx divide toda a produção social em duas grandes secções: (1) produção de meios de produção e (II) produção de artigos de consumo; e examina em pormenor, com o apoio de dados numéricos, a circulação do capital social no seu conjunto, tanto na reprodução simples como na acumulação. No tomo III de O Capital resolve-se, de acordo com a lei do valor, o problema da formação da taxa média de lucro. Um imenso progresso foi alcançado na ciência econômica pelo fato de a análise de Marx partir de fenômenos econômicos gerais, do conjunto da economia social, e não de casos isolados ou das manifestações superficiais da concorrência, aos quais se limita geralmente a economia política vulgar ou a moderna "teoria da utilidade marginal" (32). Marx analisa primeiro a origem da mais-valia e passa em seguida à sua decomposição em lucro, juro e renda da terra. O lucro é a relação entre a mais-valia e o conjunto do capital investido numa empresa. O capital de "elevada composição orgânica" (isto é, em que o capital constante ultrapassa o capital variável em proporções superiores à média social) dá uma taxa de lucro inferior à média. O capital de "baixa composição orgânica" dá uma taxa de lucro superior à média. A concorrência entre os capitais, a sua livre passagem de um ramo para outro, reduzem, em ambos os casos, a taxa de lucro à taxa média. A soma dos valores de todas as mercadorias numa dada sociedade coincide com a soma dos preços das mercadorias, mas, em cada empresa e em cada ramo de produção tomado à parte, sob influência da concorrência, as mercadorias são vendidas não pelo seu valor, mas pelo preço de produção, que é igual ao capital investido, mais o lucro médio.
Assim, a diferença entre o preço e o valor e a igualização do lucro, fatos incontestáveis e conhecidos de todos, são perfeitamente explicados por Marx com base na lei do valor, porque a soma dos valores de todas as mercadorias coincide com a soma dos seus preços. Mas a redução do valor (social) aos preços (individuais) não se dá de forma simples e direta; segue uma via muito complicada; é absolutamente natural que, numa sociedade de produtores de mercadorias dispersos, apenas ligados uns aos outros pelo mercado, as leis que regem essa sociedade não possam exprimir-se senão através de resultados médios, sociais, gerais, pela compensação recíproca dos desvios individuais num ou noutro sentido.
O aumento da produtividade do trabalho significa um crescimento mais rápido do capital constante em relação ao capital variável. Ora, sendo a mais-valia função apenas do capital variável, compreende-se que a taxa de lucro (a relação entre a mais-valia e todo o capital, e não apenas entre a mais-valia e a parte variável do capital) tenha tendência para baixar. Marx analisa minuciosamente esta tendência, assim como as diversas circunstâncias que a ocultam ou a contrariam. Sem nos determos na exposição dos interessantíssimos capítulos do tomo III, consagrados ao capital usurário, ao capital comercial e ao capital-dinheiro, abordaremos o essencial: a teoria da renda da terra. Sendo a superfície do solo limitada e estando, nos países capitalistas, inteiramente ocupada por proprietários particulares, o custo de produção dos produtos da terra é determinado pelos gastos de produção, não nos terrenos de qualidade média, mas nos da pior qualidade, e pelas condições de transporte (não médias, mas pelas mais desfavoráveis) dos produtos para o mercado. A diferença entre este preço e o preço de produção num terreno de qualidade superior (ou em melhores condições) constitui a renda diferencial. Graças a uma análise pormenorizada desta renda, em que demonstra que ela provém da diferença da fertilidade dos terrenos e da diferença dos capitais investidos na cultura, Marx põe em evidência (ver igualmente as Teorias da Mais-Valia, onde a crítica a Rodbertus merece uma atenção particular) o erro de Ricardo ao pretender que a renda diferencial só se obtém pela conversão gradual dos melhores terrenos em terrenos de qualidade inferior. Pelo contrário, transformações inversas produzem-se igualmente: terrenos de uma categoria transformam-se em terrenos de outra categoria (em virtude do progresso da técnica agrícola, do crescimento das cidades, etc.) e a famosa "lei da fertilidade decrescente do solo" é um profundo erro que atribui à natureza os defeitos, as limitações e as contradições do capitalismo. Além disso, a igualdade do lucro, em todos os ramos da indústria e da economia nacional em geral, supõe uma liberdade completa de concorrência, a liberdade de transferir o capital de um ramo para outro. Mas a propriedade privada da terra cria um monopólio que é um obstáculo a essa livre transferência. Devido a esse monopólio, os produtos de uma agricultura que se distingue por uma baixa composição orgânica do capital e que, por conseguinte, dá uma taxa de lucro individual mais elevada, não entram no livre jogo de igualização da taxa de lucro: o proprietário agrícola, que detém o monopólio da terra, pode manter o preço acima da média; este preço de monopólio dá origem à renda absoluta. A renda diferencial não pode ser abolida em regime capitalista; mas, ao contrário, a renda absoluta pode sê-lo, por exemplo, com a nacionalização da terra quando esta passa a propriedade do Estado. Esta passagem da terra para o Estado significaria a supressão do monopólio dos proprietários agrícolas, uma liberdade de concorrência mais conseqüente e mais completa na agricultura. E por isso que, diz Marx, os burgueses radicais, mais do que uma vez na história, formularam esta reivindicação burguesa progressiva da nacionalização da terra que todavia apavora a maior parte da burguesia, porque "toca" de demasiado perto um outro monopólio que atualmente é muito mais importante e "sensível": o monopólio dos meios de produção em geral. (Esta teoria do lucro médio sobre o capital e da renda absoluta da terra foi exposta por Marx numa linguagem extraordinariamente popular, concisa e clara na sua carta a Engels de 2 de Agosto de 1862. Ver Correspondência, t. III, pp. 77-8 1. Ver também a sua carta de 9 de Agosto de 1862, ibid, pp. 86-87). Importa igualmente assinalar, na história da renda da terra, a análise em que Marx demonstra a transformação da renda em trabalho (quando o camponês, trabalhando na terra do senhor, cria um sobreproduto) em renda em produtos ou renda em espécie (quando o camponês cria na sua própria terra um sobreproduto que entrega ao proprietário em virtude de uma "coerção extra-econômica"), depois em renda em dinheiro (que é a renda em espécie transformada em dinheiro - na Rússia antiga o obrok - em virtude do desenvolvimento da produção de mercadorias) e, finalmente, em renda capitalista quando o camponês é substituído pelo empresário agrícola, que cultiva a terra com a ajuda do trabalho assalariado. Relativamente a esta análise da "gênese da renda capitalista da terra", notemos uma série de idéias profundas de Marx (particularmente importantes para os países atrasados, tais como a Rússia) sobre a evolução do capitalismo na agricultura. "Com a transformação da renda em espécie em renda em dinheiro constitui-se necessariamente, ao mesmo tempo, e mesmo anteriormente, uma classe de jornaleiros não possuidores que trabalham a troco de um salário. Enquanto esta classe se constitui e enquanto se manifesta apenas esporadicamente, os camponeses abastados, sujeitos ao pagamento de uma renda, adquirem naturalmente o hábito de explorar por sua própria conta assalariados agrícolas, assim como no regime feudal os servos abastados tinham por sua vez outros servos ao seu serviço. Daqui resultou para eles a possibilidade de juntar, pouco a pouco, uma certa fortuna e de se transformarem em futuros capitalistas. Entre os antigos possuidores da terra que a exploram independentemente, cria-se assim um viveiro de rendeiros capitalistas, cujo desenvolvimento é condicionado pelo desenvolvimento geral da produção capitalista fora da agricultura (0 Capital, III2, p. 332). "A expropriação e a expulsão da aldeia de uma parte da população camponesa não só "libertam" para o capital industrial os operários, os seus meios de subsistência e os seus instrumentos de trabalho, como lhe criam, além disso, o mercado interno" (O Capital, I2, p. 778) (33). A pauperização e a ruína da população camponesa influem, por sua vez, na formação do exército de reserva do trabalho para o capital. Em todos os países capitalistas, "uma parte da população dos campos esta constantemente em vias de transformar-se em população urbana ou manufatureira (isto é, não agrícola). Esta fonte de superpopulação relativa corre continuamente ... Por conseguinte, o operário agrícola está reduzido ao mínimo de salário e tem sempre um pé no pântano do pauperismo" (O Capital, I2, p. 668) (34). A propriedade privada do camponês da terra que ele próprio cultiva constitui a base da pequena produção, a condição da sua prosperidade e do seu desenvolvimento na forma clássica. Mas esta pequena produção só é compatível com um quadro estreito, primitivo, da produção e da sociedade. Em regime capitalista, "a exploração dos camponeses só pela forma se distingue da exploração do proletariado industrial. O explorador é o mesmo: o capital. Os capitalistas tomados isoladamente exploram os camponeses isoladamente pela hipoteca e a usura. A classe capitalista explora a classe camponesa por meio dos impostos do Estado" (As Lutas de Classes em França) (35). "A parcela do camponês já não é mais do que o pretexto que permite ao capitalista tirar da terra lucro, juro e renda e deixar ao próprio camponês a preocupação de arranjar como puder o seu salário" (O 18 Brumário) (36). Normalmente, o camponês entrega mesmo à sociedade capitalista, isto é, à classe capitalista, uma parte do seu salário e desce assim "ao nível do rendeiro irlandês, tudo isto sob a aparência de proprietário privado" (As Lutas de Classes em França) (37). Qual é "uma das razões que fazem com que, nos países em que a propriedade parcelaria predomina, o preço do trigo seja menos elevado que nos países de modo de produção capitalista"? (O Capital, III2, p. 340). E que o camponês entrega gratuitamente à sociedade (isto é, à classe capitalista) uma parte do sobreproduto. "Estes baixos preços (do trigo e dos outros produtos agrícolas) resultam, portanto, da pobreza dos produtores, e não da produtividade do seu trabalho" (O Capital, t. III2, p. 340). Em regime capitalista, a pequena propriedade agrícola, forma normal da pequena produção, degrada-se, é destruída e desaparece. "Pela sua natureza, a propriedade parcelaria é incompatível com o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho, as formas sociais do trabalho, a concentração social dos capitais, a criação de gado em grande escala, a utilização progressiva da ciência. A usura e o sistema fiscal arruínam-na necessariamente em toda à parte. O capital investido na compra da terra é subtraído ao cultivo." Dispersão infinita dos meios de produção e disseminação dos próprios produtores. (As cooperativas, isto é, as associações de pequenos camponeses, que desempenham um extraordinário papel progressivo burguês, só podem atenuar esta tendência, sem entretanto a suprimir; é preciso não esquecer também que estas cooperativas dão muito aos camponeses abastados, mas muito pouco ou quase nada à massa dos camponeses pobres, e que tais associações acabam por explorar elas próprias o trabalho assalariado.) "Desperdício enorme de força humana. A deterioração progressiva das condições de produção e o encarecimento dos meios de produção são a lei necessária da propriedade parcelaria." (38) Na agricultura como na indústria, a transformação capitalista da produção produz-se ao preço do "martirológio dos produtores". "A disseminação dos operários agrícolas em grandes extensões quebra a sua força de resistência, enquanto a concentração aumenta a dos operários das cidades. Tal como na indústria moderna, o aumento da força produtiva e a mais rápida mobilização do trabalho na agricultura capitalista moderna só se obtêm pela destruição e esgotamento da própria força de trabalho. Além disso, todo o progresso da agricultura capitalista não é apenas um progresso da arte de esgotar o operário, mas também de esgotar o solo ... A produção capitalista não desenvolve portanto a técnica e a combinação do processo social de produção senão desgastando, ao mesmo tempo, as fontes de toda a riqueza: a terra e o operário." (O Capital, I, fim do 13.º capítulo.)
O Socialismo
Pelo exposto, vê-se que Marx conclui pela transformação inevitável da sociedade capitalista em sociedade socialista a partir única e exclusivamente da lei econômica do movimento da sociedade moderna. A socialização do trabalho - que avança cada vez mais rapidamente sob múltiplas formas e que, no meio século decorrido depois da morte de Marx, se manifesta sobretudo pela extensão da grande indústria, dos cartéis, dos sindicatos, dos trusts capitalistas e também pelo aumento imenso das proporções e do poderio do capital financeiro - , eis a principal base material para o advento inelutável do socialismo. O motor intelectual e moral, o agente físico desta transformação, é o proletariado, educado pelo próprio capitalismo. A sua luta contra a burguesia, revestindo-se de formas diversas e de conteúdo cada vez mais rico, torna-se inevitavelmente uma luta política tendente à conquista pelo proletariado do poder político ("ditadura do proletariado"). A socialização da produção não pode conduzir senão à transformação dos meios de produção em propriedade social, à "expropriação dos expropriadores". O aumento enorme da produtividade do trabalho, a redução da jornada de trabalho, a substituição dos vestígios, das ruínas, da pequena produção primitiva e disseminada, pelo trabalho coletivo aperfeiçoado, tais são as conseqüências diretas desta transformação. O capitalismo rompe definitivamente a ligação da agricultura com a indústria, mas prepara simultaneamente, pelo seu desenvolvimento a um nível superior, elementos novos desta ligação, a união da indústria com a agricultura na base de uma aplicação consciente da ciência, de uma coordenação do trabalho coletivo, de uma nova distribuição da população (pondo fim tanto ao isolamento do campo, ao seu estado de abandono e atraso cultural, como à aglomeração antinatural de uma enorme população nas grandes cidades). As formas superiores do capitalismo moderno criam condições para uma nova forma da família, novas condições para a mulher e para a educação das novas gerações; o trabalho das mulheres e das crianças, a dissolução da família patriarcal pelo capitalismo, tomam inevitavelmente, na sociedade moderna, as formas mais horríveis, mais miseráveis e repugnantes. Contudo, "a grande indústria, pelo papel decisivo que confere às mulheres, aos jovens e as crianças dos dois sexos nos processos de produção socialmente organizadas e fora da esfera familiar, cria urna nova base econômica para uma forma superior da família e das relações entre ambos os sexos. E, naturalmente, tão absurdo considerar como absoluta a forma germano-cristã da família como as antigas formas romana, grega ou oriental, que constituem, de resto, uma só linha de desenvolvimento histórico. E igualmente evidente que a composição do pessoal operário por indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades - que na sua forma primária, brutal, capitalista, em que o operário existe para o processo de produção, e não o processo de produção para o operário, constitui uma fonte envenenada de ruína e de escravidão - deve transformar-se, inevitavelmente, em condições adequadas, numa fonte de progresso humano" (O Capital, fim do 13.º capítulo). O sistema fabril mostra-nos "o germe da educação do futuro, que unirá, para todas as crianças acima de certa idade, o trabalho produtivo ao ensino e à ginástica, não só como método de aumento da produção social, mas também como único método capaz de produzir homens desenvolvidos em todos os aspetos" (Ibid.) E sobre a mesma base histórica que o socialismo de Marx coloca os problemas da nacionalidade e do Estado, não só para explicar o passado, mas também para prever ousadamente o futuro e conduzir uma ação audaciosa para a sua realização. As nações são um produto e uma forma inevitável da época burguesa do desenvolvimento social. A classe operária não pode fortalecer-se, amadurecer, formar-se, "sem se organizar no quadro da nação", sem ser "nacional" ("embora de nenhuma maneira no sentido burguês da palavra"). Ora, o desenvolvimento do capitalismo destrói cada vez mais as fronteiras nacionais, acaba com o isolamento nacional, substitui os antagonismos nacionais por antagonismos de classe. Por isso, nos países capitalistas desenvolvidos é perfeitamente verdadeiro que "os operários não têm pátria" e que a sua "ação unitária, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições da sua libertação" (Manifesto do Partido Comunista). O Estado, essa violência organizada, surgiu como algo inevitável numa determinada fase do desenvolvimento da sociedade, quando esta, dividida em classes irreconciliáveis, não teria podido subsistir sem um "poder" aparentemente colocado acima dela e diferenciado até certo ponto dela. Nascido dos antagonismos de classe, o Estado torna-se "o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, a qual, por meio dele, se torna também à classe politicamente dominante e adquire assim novos meios para reprimir e explorar a classe oprimida. Assim, o Estado antigo era, acima de tudo, o Estado dos escravistas, para manter os escravos submetidos o Estado feudal era o órgão de que se valia a nobreza para sujeitar os camponeses servos, e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. (Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, obra em que o autor expõe as suas idéias e as de Marx.) Mesmo a forma mais livre e progressiva do Estado burguês, a república democrática, de maneira alguma elimina este fato; ela modifica apenas a sua forma (ligação do governo com a Bolsa, corrupção direta e indireta dos funcionários e da imprensa, etc.). O socialismo, conduzindo à supressão das classes, conduz por isso mesmo à abolição do Estado. "O primeiro ato - escreve Engels no seu Anti-Dúhring - em que o Estado atua efetivamente como representante de toda a sociedade - a expropriação dos meios de produção em nome de toda a sociedade - é, ao mesmo tempo, o seu último ato independente como Estado. A intervenção do poder de Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num domínio após outro, e cessará então por si mesma. O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direção do processo de produção. O Estado não é "abolido", extingue-se." "A sociedade, que reorganizará a produção na base de uma associação livre de produtores iguais, enviará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe corresponderá então: museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze." (F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.)
Finalmente, relativamente à posição do socialismo de Marx quanto ao pequeno camponês, que subsistirá na época da expropriação dos expropriadores, interessa citar esta passagem de Engels, que exprime o pensamento de Marx: "Quando nós estivermos na posse do poder de Estado, não poderemos pensar em expropriar pela violência os pequenos camponeses (com ou sem indenização), como seremos obrigados a fazer com os grandes proprietários. A nossa missão para com os camponeses consistirá antes de mais nada em encaminhar a sua produção individual e a sua propriedade privada para um regime cooperativo, não pela força, mas sim pelo exemplo, oferecendo-lhes para este efeito a ajuda da sociedade. Teremos então certamente meios de sobra para apresentar ao pequeno camponês a perspectiva das vantagens que 1á hoje lhe têm de ser mostradas." (F. Engels, A Questão Camponesa na França e na Alemanha(39), edição de Alexéiev, p. 17. A tradução russa contém erros. Ver o original em Die Neue Zeit.)
Tácticas da Luta de Classe do Proletariado
Marx, depois de, já em 1844-1845, ter posto a descoberto um dos defeitos principais do antigo materialismo, que consistia em não compreender as condições nem apreciar a importância da ação revolucionária prática, dedicou, durante toda a sua vida, paralelamente aos trabalhos teóricos, uma atenção contínua às questões da tática da luta de classe do proletariado. Todas as obras de Marx fornecem, a este respeito, uma rica documentação, particularmente a sua correspondência com Engels, publicada em 4 volumes, em 1913. Esta correspondência está longe ainda de estar toda recolhida, classificada, estudada e analisada. Por isso teremos de nos limitar forçosamente aqui às observações mais gerais e mais breves, acentuando que, para Marx, o materialismo despojado de este aspecto, era, e com razão, um materialismo incompleto, unilateral e sem vida. Marx determinou a tarefa essencial da tática do proletariado na sua rigorosa conformidade com todas as premissas da sua concepção materialista-dialética do mundo. Só o conhecimento objetivo do conjunto de relações de todas as classes, sem exceção, de uma dada sociedade e, por conseguinte, o conhecimento do grau objetivo de desenvolvimento desta sociedade e das relações entre ela e as outras sociedades, pode servir de base a uma tática justa da classe de vanguarda. Além disso, todas as classes e países são considerados não no seu aspecto estático, mas no dinâmico, isto é, não no estado de imobilidade, mas em movimento (movimento cujas leis derivam das condições econômicas de existência de cada classe). O movimento é, por sua vez, considerado não só do ponto de vista do passado, mas também do ponto de vista do futuro, e não segundo a concepção vulgar dos "evolucionistas", que só vêem lentas transformações, mas de forma dialética." Nos grandes processos históricos, vinte anos equivalem a um dia - escrevia Marx a Engels - ainda que em seguida possam apresentar-se dias que concentram em si vinte anos." (Correspondência, t. III, p. 127.)(40) Em cada grau do seu desenvolvimento, em cada momento, a tática do proletariado deve ter em conta esta dialética objetivamente inevitável da história da humanidade: por um lado, utilizando as épocas de estagnação política, ou da chamada evolução "pacífica", que caminha a passos de tartaruga, para desenvolver a consciência, a força e a capacidade de luta da classe de vanguarda; por outro, orientando todo este trabalho de utilização para o "objetivo final" dessa classe, tornando-a capaz de resolver praticamente as grandes tarefas ao chegarem os grandes dias "que concentram em si vinte anos". Duas considerações de Marx interessam particularmente a este respeito. Uma, na Miséria da Filosofia, refere-se à luta econômica e às organizações econômicas do proletariado; a outra, no Manifesto do Partido Comunista, é relativa às tarefas políticas do proletariado. A primeira diz assim." A grande indústria concentra num único local uma multidão de pessoas, desconhecidas umas das outras. A concorrência divide os seus interesses. Mas a defesa do salário, este interesse comum que eles têm contra o patrão, une-os no mesmo pensamento de resistência, de coalizão ... As coalizões, inicialmente isoladas, constituem-se em grupos, e, face ao capital sempre unido, a manutenção da associação torna-se para eles mais importante que a defesa do salário ... Nesta luta - verdadeira guerra civil - reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários para a batalha futura. Uma vez chegada a este ponto, a coalizão toma um caráter político." (41) Temos aqui o programa e a tática da luta econômica do movimento sindical para algumas dezenas de anos, para todo o longo período de preparação das forças do proletariado para "batalha futura". Deve-se comparar isto com os numerosos exemplos extraídos da correspondência de Marx e Engels e que estes colheram do movimento operário inglês, mostrando como a "prosperidade" industrial suscita tentativas de "comprar o proletariado" (Correspondência com Engels, t. p.136)(42), de desviá-lo da luta; como esta prosperidade geralmente "desmoraliza os operários" (III, 218); como o proletariado inglês "se aburguesa", como "a nação mais burguesa de todas" (a nação inglesa) "parece que quereria vir a ter, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês" (II, 290)42 como "a energia revolucionária" desaparece nele (III, 124);(43) como será preciso esperar mais ou menos tempo que os operários ingleses "se desembaracem da sua aparente contaminação burguesa" (III, 127); como "o ardor dos cartistas" (44) falta ao movimento operário inglês (1866; III, 305)(45) como os dirigentes operários ingleses se tornam um tipo intermédio "entre a burguesia radical e o operariado" (alusão a Holyoake, IV, 209); como, em virtude do monopólio da Inglaterra e enquanto esse monopólio subsistir, "não haverá nada a fazer com o operário inglês" (IV, 433)(46). A tática da luta econômica em relação com a marcha geral (e com o resultado) do movimento operário é ai examinada de uma maneira admiravelmente ampla, universal, dialética e verdadeiramente revolucionária.
O Manifesto do Partido Comunista estabelece o seguinte principio do marxismo como postulado da tática da luta política: "Lutam eles [os comunistas] pela realização de objetivos e de interesses imediatos da classe operaria, mas representam no movimento presente também o futuro do movimento".(47) Por isso, Marx apoiou em 1848, na Polônia, o partido da "revolução agrária", "o mesmo partido que fomentou a insurreição de Cracóvia de 1846,"(48) Em 1848-1849, Marx apoiou na Alemanha a democracia revolucionária extrema, sem que nunca se retratasse do que então disse sobre tática. Considerava a burguesia alemã como um elemento "inclinado desde o início a trair o povo" (só a aliança com os camponeses teria permitido à burguesia atingir inteiramente os seus fins) e "a concluir compromissos com os representantes coroados da velha sociedade". Eis a análise final dada por Marx da posição de classe da burguesia alemã na época da revolução democrática burguesa, análise que é um modelo do materialismo que encara a sociedade em movimento e, certamente, não considera unicamente o lado do movimento que olha para trás: "... sem fé em si mesma, sem fé no povo, resmungando contra os de cima, tremendo diante dos de baixo; ...espavorida diante da tempestade mundial; nunca com energia, e sempre com plágio; ... sem iniciativa; ... um velho maldito, condenado, no seu próprio interesse senil, a dirigir os primeiros impulsos de um povo jovem e robusto (Nova Gazeta Renana, 1848, ver Literarischer Nachlass, III, p. 212.)(49) Uns vinte anos mais tarde, numa carta a Engels (III, 224), Marx escrevia que a razão do fracasso da revolução de 1848 foi à burguesia ter preferido a paz na escravidão à simples perspectiva de combater pela liberdade. Quando acabou a época revolucionária de 1848-1849, Marx opôs-se aos que se obstinavam em continuar a jogar à revolução (luta contra Schapper e Willich), exigindo que se soubesse trabalhar na nova época que preparava, sob uma "paz" aparente, novas revoluções. A seguinte apreciação de Marx sobre a situação na Alemanha nos tempos da mais negra reação, no ano de 1856, mostra em que sentido pedia Marx que esse trabalho fosse orientado: "Na Alemanha tudo dependerá da possibilidade de apoiar a revolução proletária com uma espécie de segunda edição da guerra camponesa." (Correspondência, II, 108.)(50) Enquanto não acabou na Alemanha a revolução democrática (burguesa), Marx votou roda a atenção, em matéria de tática do proletariado socialista, ao desenvolvimento da energia democrática dos camponeses. Pensava que a atitude de Lassaíle era "objetivamente uma traição para com o movimento operário, em benefício da Prússia" (III, 210); entre outras razões porque ele se mostrava demasiado complacente para com os latifundiários e para com o nacionalismo prussiano. "Num país agrário, é uma baixeza - escrevia Engels em 1865, no decurso de uma troca de opiniões com Marx a propósito de uma projetada declaração comum para a imprensa - atacar, em nome do proletariado industrial, unicamente a burguesia, sem mesmo fazer a alusão á patriarcal "exploração à paulada" a que os operários rurais se vêem submetidos pela nobreza feudal." (III, 217.)(51) No período de 1864 a 1870, quando chegava ao fim a época da revolução democrática burguesa na Alemanha, a época em que as classes exploradoras da Prússia e da Áustria disputavam acerca dos meios para terminar esta revolução por cima, Marx não se limitou a condenar Lassalle pelos seus namoros com Bismarck, corrigia também Liebknecht, que tinha caído na "austrofilia" e defendia o particularismo; Marx exigia uma tática revolucionária que combatesse tão implacavelmente Bismarck como os "austrófilos", uma tática que não se acomodasse ao "vencedor", o junker prussiano, mas recomeçasse imediatamente a luta revolucionária contra ele, inclusivamente no terreno criado pelas vitórias militares da Prússia (Correspondência com Engels, III, pp. 134, 136, 147, 179, 204, 210, 215, 418, 437, 440~441.)(52) No apelo célebre da Internacional de 9 de Setembro de 1870, Marx punha em guarda o proletariado francês contra uma insurreição prematura, mas quando, apesar de tudo, ela se produziu (1871), saudou com entusiasmo a iniciativa revolucionária das massas que "tomam o céu de assalto" (carta de Marx a Kugelmann)(53). A derrota da ação revolucionária, nesta situação como em muitas outras, era, do ponto de vista do materialismo dialético em que se situava, um mal menor na marcha geral e no resultado da luta proletária do que teria sido o abandono das posições já conquistadas, a capitulação sem combate; uma tal capitulação teria desmoralizado o proletariado e minado a sua combatividade. Apreciando em todo o seu justo valor o emprego dos meios legais de luta em período de estagnação política e de domínio da legalidade burguesa, Marx condenou vigorosamente, em 1877 e 1878, depois da promulgação da lei de exceção contra os socialistas(54),a "frase revolucionária" de um Most; mas combateu com a mesma emergia, se não mais, também o oportunismo que então se tinha apoderado temporariamente do partido social-democrata oficial, que não tinha sabido dar imediatas provas de firmeza, de tenacidade, de espírito revolucionário e de prontidão, em resposta à lei de exceção, a passar à luta ilegal (Cartas de Marx a Engels, r. IV, pp. 397, 404, 418, 422, 42455 ver igualmente as cartas de Marx a Sorge).(55)
Nenhum comentário:
Postar um comentário