V. I. Lenine
26 (13) de Julho de 1905
As divergências de opinião entre partidos políticos e no seu interior são em geral resolvidas pelo próprio correr da vida política e pelos debates teóricos. Em especial, sob a pressão dos acontecimentos, que desmentem os raciocínios errados e os privam da sua razão de ser, lhes retiram toda a actualidade, aqueles que defendiam essas opiniões passam a formas de luta válidas, e os desacordos sobre a táctica do Partido, isto é, sobre o seu comportamento político, são resolvidos na prática. Daqui não se segue, naturalmente, que as divergências de princípio nas questões de táctica não exijam clarificações de princípio, as únicas que podem manter o Partido à altura das suas convicções teóricas. Segue-se apenas que é necessário, tantas vezes quantas possível, submeter as decisões tácticas à contraprova dos novos acontecimentos políticos. Essa contraprova é necessária, tanto do ponto de vista da teoria como do da prática: da teoria, para nos convencermos pelos factos da justeza das resoluções adoptadas e darmo-nos conta das modificações que é preciso introduzir-lhes, em resultado dos novos acontecimentos políticos surgidos; da prática, para aprendermos a inspirar-nos verdadeiramente nessas resoluções, a vê-las como directivas destinadas a uma aplicação imediata e efectiva.
Uma época revolucionária oferece, mais que qualquer outra, graças à rapidez vertiginosa da evolução política e à exasperação dos choques políticos, a oportunidade de praticar essa contraprova. A antiga “superestrutura” abre fendas, enquanto a nova é edificada à vista de todos pelas mais diversas forças sociais, cuja verdadeira natureza é revelada na acção.
A revolução russa oferece-nos assim, quase de semana a semana, uma documentação política espantosamente rica, que nos permite verificar as nossas decisões tácticas elaboradas anteriormente e nos fornece as lições mais edificantes no que respeita a toda a nossa actividade prática.
Observemos os acontecimentos de Odessa. Uma tentativa insurreccional que termina em fracasso — uma derrota amarga e pesada. Mas que abismo entre este revés na luta e os reveses no regateio que chovem sobre os Chipov, Trubetskoi, Petrunkevitch, Struvé e toda essa criadagem burguesa do czar! Dizia Engels: “Os exércitos derrotados ganham com a lição”. Este excelente dito aplica-se infinitamente melhor ainda aos exércitos revolucionários, cujos efectivos são formados pelos representantes das classes de vanguarda. Enquanto não for varrida a superestrutura velha e minada, cuja podridão contamina todo o povo, qualquer nova derrota dará origem a exércitos sempre renovados de combatentes. Sem dúvida, há ainda a experiência colectiva, muito mais vasta, da humanidade, inscrita na história da democracia internacional e da social-democracia internacional e fixada pelos representantes avançados do pensamento revolucionário. É a essa experiência que o nosso partido vai buscar os elementos da sua propaganda e da sua agitação diárias. Mas, enquanto a sociedade estiver edificada sobre a opressão e a exploração dos milhões de trabalhadores, são raros os que podem aproveitar directamente das lições dessa experiência. As massas aprendem sobretudo pela sua própria experiência e pagam cada lição com sacrifícios terríveis. A lição de 9 de Janeiro foi cruel, mas ganhou para a revolução o proletariado de toda a Rússia. A lição do levantamento de Odessa é cruel mas, vindo somar-se a um estado de espírito já revolucionário, ensinará o proletariado revolucionário a vencer e não apenas a bater-se. O exército revolucionário foi batido, viva o exército revolucionário! – eis o que dizemos depois dos acontecimentos de Odessa.
Já no nº 7 do nosso jornal escrevemos que a insurreição de Odessa iluminava com uma luz nova as nossas palavras de ordem “Exército revolucionário e governo revolucionário”. Falámos no número anterior das lições da insurreição do ponto de vista militar (ver o artigo do camarada V. S.). Neste número detemo-nos uma vez mais sobre as suas lições políticas (ver “A revolução das cidades”). Convém proceder agora à verificação das nossas decisões tácticas recentes, sob o duplo ponto de vista, de que falávamos atrás, do acerto teórico e da oportunidade prática.
A insurreição e o governo revolucionário são no momento presente os problemas políticos mais imediatos. Foram os problemas que provocaram mais discussões entre os social-democratas. As principais resoluções do III Congresso do POSDR e da conferência dos secessionistas são-lhes dedicadas. É oportuno portanto perguntar como se manifestam essas divergências depois do levantamento de Odessa. Todo aquele que se dê ao trabalho de reler agora, por um lado, as opiniões expressas e os artigos escritos sobre esse levantamento e, por outro lado, as quatro resoluções dedicadas pelo congresso do Partido e pela conferência da nova Iskra à insurreição e ao governo provisório, verá desde logo que a nova Iskra evolui ao sabor dos acontecimentos e adopta na prática as posições dos seus adversários; por outros termos, conforma-se não às suas próprias resoluções, mas às do III Congresso. Não há melhor crítica a uma doutrina errada do que os acontecimentos revolucionários.
A redacção da Iskra, publicou, sob a influência dos acontecimentos, um manifesto intitulado “A primeira vitória da revolução”, dirigido “aos cidadãos russos, aos operários, aos camponeses”. Eis as suas passagens essenciais:
“É chegada a hora de agir audaciosamente e de apoiar com todas as nossas forças a corajosa revolta dos soldados. A partir de agora a vitória caberá aos audaciosos!
Convocai abertamente assembleias populares e comunicai-lhes o desmoronamento dos alicerces militares do czarismo! Apoderai-vos logo que possível das administrações municipais e transformai-as em bases da auto-administração do povo! Expulsai os funcionários do czar, procedei à eleição por sufrágio universal dos órgãos de auto-administração revolucionária, aos quais confiareis a gestão provisória dos assuntos públicos até à vitória final sobre o governo do czar, até ao estabelecimento do novo regime. Apoderai-vos das sucursais do Banco do Estado e dos depósitos de armas, armai o povo! Estabelecei a ligação entre as cidades, e das cidades com os campos. Que os cidadãos em armas não tardem em apoiar-se mutuamente, onde quer que seja necessário. Apoderai-vos das prisões e libertai os nossos irmãos de luta; eles virão reforçar as vossas fileiras! Proclamai por toda a parte a destituição da monarquia imperial e a sua substituição por uma república democrática livre! Erguei-vos, cidadãos, é chegada a hora da libertação! Viva a revolução! Viva a República democrática! Viva o exército revolucionário! Abaixo a autocracia!”
Temos aqui um apelo resoluto, claro e franco à insurreição armada geral. Temos também um apelo não menos resoluto (embora infelizmente velado e incompleto) à formação de um governo provisório revolucionário. Comecemos pelo problema da insurreição.
Existe divergência de princípio entre as soluções dadas a este problema pelo III Congresso e pela conferência? Sim, incontestavelmente. Já a referimos no nº 6 de Proletari, de 3 de Julho (“O terceiro passo atrás”); invoquemos agora o edificante testemunho de Osvobojdenié. Lemos no nº 72 desta revista que a “maioria” cai no “revolucionarismo abstracto, na ideia feita da revolta, no desejo de levantar a qualquer preço as massas populares e de se apoderar em seu nome do poder”. “A minoria, pelo contrário, embora mantendo-se firmemente fiel ao dogma marxista, salvaguarda ao mesmo tempo os elementos realistas do pensamento marxista”. Esta apreciação, vinda de liberais que passaram pela escola preparatória do marxismo e pelo bernsteinismo, é preciosa em extremo. Os burgueses liberais sempre censuraram à ala revolucionária da social-democracia o seu “revolucionarismo abstracto e a sua ideia feita da revolta”. Sempre louvaram o “espírito realista” da ala oportunista. A própria Iskra foi forçada a reconhecer (ver no nº 73 a nota sobre a aprovação dada pelo Sr. Struvé ao “espírito realista” da brochura do camarada Akimov) que, na boca da gente da Osvobojdenié, “realista” quer dizer “oportunista”. Em matéria de realismo, os cavalheiros da Osvobojdenié só conhecem o realismo rastejante. A dialéctica revolucionária do realismo marxista, que sublinha os objectivos de combate da classe de vanguarda e descobre naquilo que existe os elementos da sua destruição, é-lhes completamente estranha. Por isso, a definição das duas tendências da social-democracia dada pela Osvobojdenié confirma mais uma vez o facto, provado pelos nossos escritos, de que a “maioria” é a ala revolucionária da social-democracia russa e a “minoria”, a sua ala oportunista.
A Osvobojdenié reconhece sem meias tintas que “a conferência da minoria adopta em relação à insurreição armada uma atitude inteiramente diferente” da do congresso. E o caso é que a resolução da conferência: 1º) derruba-se a si própria, tão depressa negando a possibilidade de uma insurreição concertada e conjunta (parágr. 1), como admitindo-a (ponto d); 2º) limita-se a enumerar as condições gerais da “preparação da insurreição”, tais como: a) extensão da agitação; b) reforço dos laços com o movimento de massas; c) desenvolvimento da consciência revolucionária; d) ligação entre as diversas localidades; e) apoio ao proletariado da parte dos grupos não proletários. A resolução do congresso, pelo contrário, formula palavras de ordem positivas, reconhecendo que o movimento torna já a insurreição necessária, convidando a organizar o proletariado pela luta imediata, a tomar as medidas mais enérgicas para o armar, a explicar na propaganda e na agitação “não apenas o alcance político” da insurreição (que é o que se limita, no fundo, a fazer a resolução da conferência), mas também as questões práticas e organizativas que ela suscita.
A fim de captar melhor a diferença entre as duas soluções, recordemos como evoluíram as ideias social-democratas sobre a insurreição, desde a origem do movimento operário de massa. Primeira etapa, 1897. As tarefas dos social-democratas russos de Lenine dizem que “querer decidir desde agora a questão dos meios a que a social-democracia recorrerá para derrubar a autocracia, querer decidir se ela escolherá a insurreição ou a greve política de massa, ou qualquer outro procedimento ofensivo – seria como se generais reunissem um conselho de guerra sem ter ainda reunido um exército” (p. 18). Como vemos, não se trata aqui de preparar a insurreição mas unicamente de formar o exército, ou seja, fazer propaganda, agitação, organização em geral.
Segunda etapa, 1902. Lemos em Que fazer? de Lenine:
“Imagine-se uma insurreição popular. Todos concordarão hoje, sem dúvida (Fevereiro de 1902), que devemos pensar nela e prepará-la. Mas como preparar-nos? Decerto ninguém espera que um Comité Central nomeie agentes em todas as localidades para preparar a insurreição. Mesmo que tivéssemos um Comité Central e que este tomasse tal medida, nas condições actuais da Rússia nada conseguiria. Pelo contrário, uma rede de agentes que se tenha formado por si mesma no trabalho de criação e difusão de um jornal comum não deveria ficar à espera, “de braços cruzados”, pela palavra-de-ordem da insurreição; realizaria justamente um trabalho regular, que lhe garantiria, em caso de insurreição, o máximo de hipóteses de êxito – trabalho que reforçaria os laços com as massas operárias mais profundas e com todas as camadas da população descontentes com a autocracia, o que é tão importante para a insurreição. É no decurso desse trabalho que se aprenderá a avaliar exactamente a situação política geral e, por consequência, a escolher o momento mais favorável para a insurreição. É esta acção que ensinará todas as organizações locais a reagir simultaneamente aos problemas, incidentes ou acontecimentos políticos que apaixonam toda a Rússia; a responder a esses “acontecimentos” da forma mais enérgica, mais uniforme e mais racional possível. Porque, no fundo, a insurreição é a ‘resposta’ mais enérgica, mais uniforme e mais racional, dada por todo o povo ao governo. Esta acção, precisamente, ensinará todas as organizações revolucionárias, em todos os pontos da Rússia, a manter entre si relações mais regulares e ao mesmo tempo mais clandestinas, relações que criam a unidade efectiva do Partido e sem as quais é impossível discutir conjuntamente o plano da insurreição e tomar, em vésperas desta, as medidas preparatórias necessárias, mantidas no mais rigoroso segredo” (pp. 136-137).
Quais são os postulados destas reflexões sobre a insurreição?
É absurdo conceber a “preparação” de uma insurreição como a nomeação de agentes especiais que “aguardam” a palavra-de-ordem de braços cruzados.
É necessário um laço, formado no trabalho comum, entre homens e organizações desenvolvendo um trabalho regular.
É necessário consolidar neste mesmo trabalho a ligações entre as camadas proletárias (operárias) e não proletárias (todos os descontentes) da população.
É necessário aprender colectivamente a avaliar com acerto as situações políticas e a “reagir” aos acontecimentos políticos da forma mais apropriada.
É necessário unir efectivamente entre si todas as organizações revolucionárias locais.
Estamos pois em presença de uma palavra-de-ordem, nitidamente formulada, de preparação da insurreição, mas ainda sem fazer apelo directo à insurreição, sem se dizer que o momento “torna já” a insurreição necessária, que é necessário armar-se de imediato, formar grupos de combate, etc. Estamos perante uma análise das condições de preparação da insurreição, que são repetidas, de forma quase literal, na resolução da conferência (em 1905!).
Terceira etapa, 1905. É dado um novo passo em frente no jornal Vpériod e, mais tarde, na resolução do III Congresso: para além da preparação política geral da insurreição, é lançada a palavra-de-ordem directa de organização e de armamento com vista à insurreição, de formação de grupos especiais (de combate), porque o movimento “torna já necessária a insurreição armada” (segundo ponto da resolução do Congresso).
Esta breve evocação histórica conduz-nos a três conclusões incontestáveis:
É pura mentira a afirmação dos burgueses liberais da Osvobojdenié de que nós caímos no “revolucionarismo abstracto, na ideia feita da revolta”. Sempre colocámos e continuamos a colocar esta questão em termos concretos e não “no abstracto”; demos-lhe soluções diferentes em 1897, em 1902 e em 1905. A acusação de uma ideia feita de revolta não passa de uma frase oportunista na boca de respeitáveis liberais burgueses que se preparam para trair os interesses da revolução e passar-se para o campo inimigo no momento da luta decisiva contra a autocracia.
A conferência da nova Iskra deteve-se na segunda etapa do desenvolvimento da questão. Limitou-se em 1905 a repetir o que só em 1902 era suficiente. Leva três anos de atraso sobre a progressão da revolução.
Sob a influência das lições da vida, e mais precisamente da insurreição de Odessa, os neo-iskristas reconheceram de facto a necessidade de se guiar, não pela sua própria resolução, mas pela do congresso; por outras palavras, reconheceram que o problema da insurreição não consente qualquer atraso e que os apelos prementes e directos à organização imediata do armamento e da insurreição são incontestavelmente necessários.
A doutrina da social-democracia retardatária foi desde logo rejeitada pela revolução. É menos um obstáculo à união prática num trabalho comum com o grupo da nova Iskra, o que aliás não significa ainda a eliminação completa das divergências de princípio. Não podemos contentar-nos em ver as nossas palavras-de-ordem tácticas esfalfar-se a correr atrás dos acontecimentos e adaptar-se-lhes com atraso. Devemos esforçar-nos por que sejam guias a iluminar-nos o caminho, a elevar-nos acima das tarefas o momento. O partido do proletariado, se quiser conduzir uma luta consequente e firme, não pode determinar a sua táctica no dia-a-dia. As suas decisões tácticas devem unir a fidelidade aos princípios do marxismo com uma apreciação infalível das tarefas de vanguarda da classe revolucionária.
Consideremos agora uma outra questão política premente, a do governo revolucionário provisório. Vemos aqui, talvez melhor ainda, a redacção da Iskra romper, de facto, no seu manifesto, com as palavras-de-ordem da conferência para adoptar as palavras-de-ordem tácticas do III Congresso. O absurdo teórico de “não traçar como objectivo a conquista” (pela revolução democrática) “ou a partilha do poder, no governo provisório” é lançada pela borda fora, visto que o manifesto apela com todas as letras a “apoderar-se das administrações municipais” e a organizar a “gestão provisória dos assuntos públicos”. A absurda palavra-de-ordem de “permanecer como o partido da oposição revolucionária extrema” (absurda numa época de revolução, embora muito justa numa época de luta unicamente parlamentar) é de facto mandado para os arquivos, visto que os acontecimentos de Odessa obrigaram a Iskra a compreender que é ridículo manter-se agarrada a essa palavra-de-ordem quando surge a insurreição e é necessário apelar activamente à insurreição, à acção mais enérgica e à utilização do poder revolucionário. A absurda palavra-de-ordem das “comunas revolucionárias” é também mandada para o refugo, porque os acontecimentos de Odessa fizeram a Iskra compreender que só facilitava a confusão entre as revoluções socialista e democrática. Ora, confundir coisas tão diferentes seria dar prova de uma tendência para a aventura, atestaria uma ausência total de clareza no pensamento teórico, e poderia entravar a realização das medidas práticas mais urgentes, destinadas a facilitar à classe operária a luta pelo socialismo na República democrática.
Recordemos a polémica da nova Iskra com Vpériod e a sua táctica “só pela base”, oposta à do Vpériod: “pela base e pelo topo”, e veremos que a Iskra adoptou a nossa solução – agora apela também à acção por cima. Recordemos como a Iskra concluía que nós caíamos em compromisso ao assumir a responsabilidade pela tesouraria, pelas finanças, etc., e veremos que, se os nossos argumentos não convenceram a Iskra, os acontecimentos acabaram por se encarregar de lhe demonstrar a sua justeza – agora recomenda com todas as letras, no manifesto citado, “apoderai-vos das sucursais do Banco do Estado”. A absurda teoria segundo a qual a ditadura revolucionária democrática do proletariado e dos camponeses, a sua participação comum no governo revolucionário provisório, seria uma “traição à causa do proletariado”, seria “jauresismo (millerandismo) vulgar”, é muito simplesmente esquecida pelos neo-iskristas, que agora convidam esses mesmos operários e camponeses a tomar posse das administrações municipais, das sucursais do Banco do Estado, dos depósitos de armas, a “armar o povo” (armá-lo, pelos vistos, com armas, e já não apenas com a “ardente necessidade de se armar”), a proclamar a destituição da monarquia autocrática, etc. –, numa palavra, a agir em tudo de acordo com o programa traçado pela resolução do III Congresso, a agir precisamente como indica a palavra-de-ordem da ditadura revolucionária democrática e do governo revolucionário provisório.
É certo que a Iskra não menciona no seu manifesto nem uma nem outra destas palavras-de-ordem. Enumera e descreve todas as acções cujo conjunto caracteriza o governo revolucionário provisório mas evita pronunciar essa palavra. Faz mal. O facto é que adopta na realidade essa palavra-de-ordem. A ausência de um termo nítido tenderá a provocar hesitações, a semear a indecisão e a confusão no espírito dos combatentes. O receio das palavras “governo revolucionário”, “poder revolucionário”, é um sentimento puramente anarquista e indigno de marxistas. Para se “apoderar” das administrações dos bancos, “proceder a eleições”, encarregar da “gestão provisória dos assuntos”, “proclamar a destituição da monarquia, é evidentemente indispensável começar por criar e proclamar um governo revolucionário. Sem essa unificação, sem o reconhecimento geral do governo provisório pelo conjunto do povo revolucionário, sem a transferência da totalidade do poder para esse governo, qualquer “tomada” das administrações, qualquer “proclamação” da República, não passará de um puro e simples gesto de revolta sem alcance sério. A energia revolucionária do povo, se não for concentrada por um governo revolucionário, estará condenada a dispersar-se após o primeiro êxito da insurreição, consumir-se-á em ninharias, perderá a amplitude nacional e não conseguirá conservar aquilo que for tomado nem realizar o que for proclamado.
Repitamo-lo: de facto, na realidade, os social-democratas que se recusam a reconhecer as decisões do III Congresso do POSDR são forçados pelos acontecimentos a agir de acordo com essas mesma decisões e a lançar borda fora as palavras-de-ordem da sua conferência. A revolução educa. A nossa missão é aproveitar as suas lições até à última gota, pôr as nossas palavras-de-ordem tácticas em acordo com a nossa conduta e com as nossas tarefas imediatas, difundir entre as massas ideias correctas sobre essa tarefas imediatas, proceder amplamente e por toda a parte à organização dos operários, com vista ao combate e à insurreição, para a criação do exército revolucionário e a formação do governo revolucionário provisório!
26 (13) de Julho de 1905
As divergências de opinião entre partidos políticos e no seu interior são em geral resolvidas pelo próprio correr da vida política e pelos debates teóricos. Em especial, sob a pressão dos acontecimentos, que desmentem os raciocínios errados e os privam da sua razão de ser, lhes retiram toda a actualidade, aqueles que defendiam essas opiniões passam a formas de luta válidas, e os desacordos sobre a táctica do Partido, isto é, sobre o seu comportamento político, são resolvidos na prática. Daqui não se segue, naturalmente, que as divergências de princípio nas questões de táctica não exijam clarificações de princípio, as únicas que podem manter o Partido à altura das suas convicções teóricas. Segue-se apenas que é necessário, tantas vezes quantas possível, submeter as decisões tácticas à contraprova dos novos acontecimentos políticos. Essa contraprova é necessária, tanto do ponto de vista da teoria como do da prática: da teoria, para nos convencermos pelos factos da justeza das resoluções adoptadas e darmo-nos conta das modificações que é preciso introduzir-lhes, em resultado dos novos acontecimentos políticos surgidos; da prática, para aprendermos a inspirar-nos verdadeiramente nessas resoluções, a vê-las como directivas destinadas a uma aplicação imediata e efectiva.
Uma época revolucionária oferece, mais que qualquer outra, graças à rapidez vertiginosa da evolução política e à exasperação dos choques políticos, a oportunidade de praticar essa contraprova. A antiga “superestrutura” abre fendas, enquanto a nova é edificada à vista de todos pelas mais diversas forças sociais, cuja verdadeira natureza é revelada na acção.
A revolução russa oferece-nos assim, quase de semana a semana, uma documentação política espantosamente rica, que nos permite verificar as nossas decisões tácticas elaboradas anteriormente e nos fornece as lições mais edificantes no que respeita a toda a nossa actividade prática.
Observemos os acontecimentos de Odessa. Uma tentativa insurreccional que termina em fracasso — uma derrota amarga e pesada. Mas que abismo entre este revés na luta e os reveses no regateio que chovem sobre os Chipov, Trubetskoi, Petrunkevitch, Struvé e toda essa criadagem burguesa do czar! Dizia Engels: “Os exércitos derrotados ganham com a lição”. Este excelente dito aplica-se infinitamente melhor ainda aos exércitos revolucionários, cujos efectivos são formados pelos representantes das classes de vanguarda. Enquanto não for varrida a superestrutura velha e minada, cuja podridão contamina todo o povo, qualquer nova derrota dará origem a exércitos sempre renovados de combatentes. Sem dúvida, há ainda a experiência colectiva, muito mais vasta, da humanidade, inscrita na história da democracia internacional e da social-democracia internacional e fixada pelos representantes avançados do pensamento revolucionário. É a essa experiência que o nosso partido vai buscar os elementos da sua propaganda e da sua agitação diárias. Mas, enquanto a sociedade estiver edificada sobre a opressão e a exploração dos milhões de trabalhadores, são raros os que podem aproveitar directamente das lições dessa experiência. As massas aprendem sobretudo pela sua própria experiência e pagam cada lição com sacrifícios terríveis. A lição de 9 de Janeiro foi cruel, mas ganhou para a revolução o proletariado de toda a Rússia. A lição do levantamento de Odessa é cruel mas, vindo somar-se a um estado de espírito já revolucionário, ensinará o proletariado revolucionário a vencer e não apenas a bater-se. O exército revolucionário foi batido, viva o exército revolucionário! – eis o que dizemos depois dos acontecimentos de Odessa.
Já no nº 7 do nosso jornal escrevemos que a insurreição de Odessa iluminava com uma luz nova as nossas palavras de ordem “Exército revolucionário e governo revolucionário”. Falámos no número anterior das lições da insurreição do ponto de vista militar (ver o artigo do camarada V. S.). Neste número detemo-nos uma vez mais sobre as suas lições políticas (ver “A revolução das cidades”). Convém proceder agora à verificação das nossas decisões tácticas recentes, sob o duplo ponto de vista, de que falávamos atrás, do acerto teórico e da oportunidade prática.
A insurreição e o governo revolucionário são no momento presente os problemas políticos mais imediatos. Foram os problemas que provocaram mais discussões entre os social-democratas. As principais resoluções do III Congresso do POSDR e da conferência dos secessionistas são-lhes dedicadas. É oportuno portanto perguntar como se manifestam essas divergências depois do levantamento de Odessa. Todo aquele que se dê ao trabalho de reler agora, por um lado, as opiniões expressas e os artigos escritos sobre esse levantamento e, por outro lado, as quatro resoluções dedicadas pelo congresso do Partido e pela conferência da nova Iskra à insurreição e ao governo provisório, verá desde logo que a nova Iskra evolui ao sabor dos acontecimentos e adopta na prática as posições dos seus adversários; por outros termos, conforma-se não às suas próprias resoluções, mas às do III Congresso. Não há melhor crítica a uma doutrina errada do que os acontecimentos revolucionários.
A redacção da Iskra, publicou, sob a influência dos acontecimentos, um manifesto intitulado “A primeira vitória da revolução”, dirigido “aos cidadãos russos, aos operários, aos camponeses”. Eis as suas passagens essenciais:
“É chegada a hora de agir audaciosamente e de apoiar com todas as nossas forças a corajosa revolta dos soldados. A partir de agora a vitória caberá aos audaciosos!
Convocai abertamente assembleias populares e comunicai-lhes o desmoronamento dos alicerces militares do czarismo! Apoderai-vos logo que possível das administrações municipais e transformai-as em bases da auto-administração do povo! Expulsai os funcionários do czar, procedei à eleição por sufrágio universal dos órgãos de auto-administração revolucionária, aos quais confiareis a gestão provisória dos assuntos públicos até à vitória final sobre o governo do czar, até ao estabelecimento do novo regime. Apoderai-vos das sucursais do Banco do Estado e dos depósitos de armas, armai o povo! Estabelecei a ligação entre as cidades, e das cidades com os campos. Que os cidadãos em armas não tardem em apoiar-se mutuamente, onde quer que seja necessário. Apoderai-vos das prisões e libertai os nossos irmãos de luta; eles virão reforçar as vossas fileiras! Proclamai por toda a parte a destituição da monarquia imperial e a sua substituição por uma república democrática livre! Erguei-vos, cidadãos, é chegada a hora da libertação! Viva a revolução! Viva a República democrática! Viva o exército revolucionário! Abaixo a autocracia!”
Temos aqui um apelo resoluto, claro e franco à insurreição armada geral. Temos também um apelo não menos resoluto (embora infelizmente velado e incompleto) à formação de um governo provisório revolucionário. Comecemos pelo problema da insurreição.
Existe divergência de princípio entre as soluções dadas a este problema pelo III Congresso e pela conferência? Sim, incontestavelmente. Já a referimos no nº 6 de Proletari, de 3 de Julho (“O terceiro passo atrás”); invoquemos agora o edificante testemunho de Osvobojdenié. Lemos no nº 72 desta revista que a “maioria” cai no “revolucionarismo abstracto, na ideia feita da revolta, no desejo de levantar a qualquer preço as massas populares e de se apoderar em seu nome do poder”. “A minoria, pelo contrário, embora mantendo-se firmemente fiel ao dogma marxista, salvaguarda ao mesmo tempo os elementos realistas do pensamento marxista”. Esta apreciação, vinda de liberais que passaram pela escola preparatória do marxismo e pelo bernsteinismo, é preciosa em extremo. Os burgueses liberais sempre censuraram à ala revolucionária da social-democracia o seu “revolucionarismo abstracto e a sua ideia feita da revolta”. Sempre louvaram o “espírito realista” da ala oportunista. A própria Iskra foi forçada a reconhecer (ver no nº 73 a nota sobre a aprovação dada pelo Sr. Struvé ao “espírito realista” da brochura do camarada Akimov) que, na boca da gente da Osvobojdenié, “realista” quer dizer “oportunista”. Em matéria de realismo, os cavalheiros da Osvobojdenié só conhecem o realismo rastejante. A dialéctica revolucionária do realismo marxista, que sublinha os objectivos de combate da classe de vanguarda e descobre naquilo que existe os elementos da sua destruição, é-lhes completamente estranha. Por isso, a definição das duas tendências da social-democracia dada pela Osvobojdenié confirma mais uma vez o facto, provado pelos nossos escritos, de que a “maioria” é a ala revolucionária da social-democracia russa e a “minoria”, a sua ala oportunista.
A Osvobojdenié reconhece sem meias tintas que “a conferência da minoria adopta em relação à insurreição armada uma atitude inteiramente diferente” da do congresso. E o caso é que a resolução da conferência: 1º) derruba-se a si própria, tão depressa negando a possibilidade de uma insurreição concertada e conjunta (parágr. 1), como admitindo-a (ponto d); 2º) limita-se a enumerar as condições gerais da “preparação da insurreição”, tais como: a) extensão da agitação; b) reforço dos laços com o movimento de massas; c) desenvolvimento da consciência revolucionária; d) ligação entre as diversas localidades; e) apoio ao proletariado da parte dos grupos não proletários. A resolução do congresso, pelo contrário, formula palavras de ordem positivas, reconhecendo que o movimento torna já a insurreição necessária, convidando a organizar o proletariado pela luta imediata, a tomar as medidas mais enérgicas para o armar, a explicar na propaganda e na agitação “não apenas o alcance político” da insurreição (que é o que se limita, no fundo, a fazer a resolução da conferência), mas também as questões práticas e organizativas que ela suscita.
A fim de captar melhor a diferença entre as duas soluções, recordemos como evoluíram as ideias social-democratas sobre a insurreição, desde a origem do movimento operário de massa. Primeira etapa, 1897. As tarefas dos social-democratas russos de Lenine dizem que “querer decidir desde agora a questão dos meios a que a social-democracia recorrerá para derrubar a autocracia, querer decidir se ela escolherá a insurreição ou a greve política de massa, ou qualquer outro procedimento ofensivo – seria como se generais reunissem um conselho de guerra sem ter ainda reunido um exército” (p. 18). Como vemos, não se trata aqui de preparar a insurreição mas unicamente de formar o exército, ou seja, fazer propaganda, agitação, organização em geral.
Segunda etapa, 1902. Lemos em Que fazer? de Lenine:
“Imagine-se uma insurreição popular. Todos concordarão hoje, sem dúvida (Fevereiro de 1902), que devemos pensar nela e prepará-la. Mas como preparar-nos? Decerto ninguém espera que um Comité Central nomeie agentes em todas as localidades para preparar a insurreição. Mesmo que tivéssemos um Comité Central e que este tomasse tal medida, nas condições actuais da Rússia nada conseguiria. Pelo contrário, uma rede de agentes que se tenha formado por si mesma no trabalho de criação e difusão de um jornal comum não deveria ficar à espera, “de braços cruzados”, pela palavra-de-ordem da insurreição; realizaria justamente um trabalho regular, que lhe garantiria, em caso de insurreição, o máximo de hipóteses de êxito – trabalho que reforçaria os laços com as massas operárias mais profundas e com todas as camadas da população descontentes com a autocracia, o que é tão importante para a insurreição. É no decurso desse trabalho que se aprenderá a avaliar exactamente a situação política geral e, por consequência, a escolher o momento mais favorável para a insurreição. É esta acção que ensinará todas as organizações locais a reagir simultaneamente aos problemas, incidentes ou acontecimentos políticos que apaixonam toda a Rússia; a responder a esses “acontecimentos” da forma mais enérgica, mais uniforme e mais racional possível. Porque, no fundo, a insurreição é a ‘resposta’ mais enérgica, mais uniforme e mais racional, dada por todo o povo ao governo. Esta acção, precisamente, ensinará todas as organizações revolucionárias, em todos os pontos da Rússia, a manter entre si relações mais regulares e ao mesmo tempo mais clandestinas, relações que criam a unidade efectiva do Partido e sem as quais é impossível discutir conjuntamente o plano da insurreição e tomar, em vésperas desta, as medidas preparatórias necessárias, mantidas no mais rigoroso segredo” (pp. 136-137).
Quais são os postulados destas reflexões sobre a insurreição?
É absurdo conceber a “preparação” de uma insurreição como a nomeação de agentes especiais que “aguardam” a palavra-de-ordem de braços cruzados.
É necessário um laço, formado no trabalho comum, entre homens e organizações desenvolvendo um trabalho regular.
É necessário consolidar neste mesmo trabalho a ligações entre as camadas proletárias (operárias) e não proletárias (todos os descontentes) da população.
É necessário aprender colectivamente a avaliar com acerto as situações políticas e a “reagir” aos acontecimentos políticos da forma mais apropriada.
É necessário unir efectivamente entre si todas as organizações revolucionárias locais.
Estamos pois em presença de uma palavra-de-ordem, nitidamente formulada, de preparação da insurreição, mas ainda sem fazer apelo directo à insurreição, sem se dizer que o momento “torna já” a insurreição necessária, que é necessário armar-se de imediato, formar grupos de combate, etc. Estamos perante uma análise das condições de preparação da insurreição, que são repetidas, de forma quase literal, na resolução da conferência (em 1905!).
Terceira etapa, 1905. É dado um novo passo em frente no jornal Vpériod e, mais tarde, na resolução do III Congresso: para além da preparação política geral da insurreição, é lançada a palavra-de-ordem directa de organização e de armamento com vista à insurreição, de formação de grupos especiais (de combate), porque o movimento “torna já necessária a insurreição armada” (segundo ponto da resolução do Congresso).
Esta breve evocação histórica conduz-nos a três conclusões incontestáveis:
É pura mentira a afirmação dos burgueses liberais da Osvobojdenié de que nós caímos no “revolucionarismo abstracto, na ideia feita da revolta”. Sempre colocámos e continuamos a colocar esta questão em termos concretos e não “no abstracto”; demos-lhe soluções diferentes em 1897, em 1902 e em 1905. A acusação de uma ideia feita de revolta não passa de uma frase oportunista na boca de respeitáveis liberais burgueses que se preparam para trair os interesses da revolução e passar-se para o campo inimigo no momento da luta decisiva contra a autocracia.
A conferência da nova Iskra deteve-se na segunda etapa do desenvolvimento da questão. Limitou-se em 1905 a repetir o que só em 1902 era suficiente. Leva três anos de atraso sobre a progressão da revolução.
Sob a influência das lições da vida, e mais precisamente da insurreição de Odessa, os neo-iskristas reconheceram de facto a necessidade de se guiar, não pela sua própria resolução, mas pela do congresso; por outras palavras, reconheceram que o problema da insurreição não consente qualquer atraso e que os apelos prementes e directos à organização imediata do armamento e da insurreição são incontestavelmente necessários.
A doutrina da social-democracia retardatária foi desde logo rejeitada pela revolução. É menos um obstáculo à união prática num trabalho comum com o grupo da nova Iskra, o que aliás não significa ainda a eliminação completa das divergências de princípio. Não podemos contentar-nos em ver as nossas palavras-de-ordem tácticas esfalfar-se a correr atrás dos acontecimentos e adaptar-se-lhes com atraso. Devemos esforçar-nos por que sejam guias a iluminar-nos o caminho, a elevar-nos acima das tarefas o momento. O partido do proletariado, se quiser conduzir uma luta consequente e firme, não pode determinar a sua táctica no dia-a-dia. As suas decisões tácticas devem unir a fidelidade aos princípios do marxismo com uma apreciação infalível das tarefas de vanguarda da classe revolucionária.
Consideremos agora uma outra questão política premente, a do governo revolucionário provisório. Vemos aqui, talvez melhor ainda, a redacção da Iskra romper, de facto, no seu manifesto, com as palavras-de-ordem da conferência para adoptar as palavras-de-ordem tácticas do III Congresso. O absurdo teórico de “não traçar como objectivo a conquista” (pela revolução democrática) “ou a partilha do poder, no governo provisório” é lançada pela borda fora, visto que o manifesto apela com todas as letras a “apoderar-se das administrações municipais” e a organizar a “gestão provisória dos assuntos públicos”. A absurda palavra-de-ordem de “permanecer como o partido da oposição revolucionária extrema” (absurda numa época de revolução, embora muito justa numa época de luta unicamente parlamentar) é de facto mandado para os arquivos, visto que os acontecimentos de Odessa obrigaram a Iskra a compreender que é ridículo manter-se agarrada a essa palavra-de-ordem quando surge a insurreição e é necessário apelar activamente à insurreição, à acção mais enérgica e à utilização do poder revolucionário. A absurda palavra-de-ordem das “comunas revolucionárias” é também mandada para o refugo, porque os acontecimentos de Odessa fizeram a Iskra compreender que só facilitava a confusão entre as revoluções socialista e democrática. Ora, confundir coisas tão diferentes seria dar prova de uma tendência para a aventura, atestaria uma ausência total de clareza no pensamento teórico, e poderia entravar a realização das medidas práticas mais urgentes, destinadas a facilitar à classe operária a luta pelo socialismo na República democrática.
Recordemos a polémica da nova Iskra com Vpériod e a sua táctica “só pela base”, oposta à do Vpériod: “pela base e pelo topo”, e veremos que a Iskra adoptou a nossa solução – agora apela também à acção por cima. Recordemos como a Iskra concluía que nós caíamos em compromisso ao assumir a responsabilidade pela tesouraria, pelas finanças, etc., e veremos que, se os nossos argumentos não convenceram a Iskra, os acontecimentos acabaram por se encarregar de lhe demonstrar a sua justeza – agora recomenda com todas as letras, no manifesto citado, “apoderai-vos das sucursais do Banco do Estado”. A absurda teoria segundo a qual a ditadura revolucionária democrática do proletariado e dos camponeses, a sua participação comum no governo revolucionário provisório, seria uma “traição à causa do proletariado”, seria “jauresismo (millerandismo) vulgar”, é muito simplesmente esquecida pelos neo-iskristas, que agora convidam esses mesmos operários e camponeses a tomar posse das administrações municipais, das sucursais do Banco do Estado, dos depósitos de armas, a “armar o povo” (armá-lo, pelos vistos, com armas, e já não apenas com a “ardente necessidade de se armar”), a proclamar a destituição da monarquia autocrática, etc. –, numa palavra, a agir em tudo de acordo com o programa traçado pela resolução do III Congresso, a agir precisamente como indica a palavra-de-ordem da ditadura revolucionária democrática e do governo revolucionário provisório.
É certo que a Iskra não menciona no seu manifesto nem uma nem outra destas palavras-de-ordem. Enumera e descreve todas as acções cujo conjunto caracteriza o governo revolucionário provisório mas evita pronunciar essa palavra. Faz mal. O facto é que adopta na realidade essa palavra-de-ordem. A ausência de um termo nítido tenderá a provocar hesitações, a semear a indecisão e a confusão no espírito dos combatentes. O receio das palavras “governo revolucionário”, “poder revolucionário”, é um sentimento puramente anarquista e indigno de marxistas. Para se “apoderar” das administrações dos bancos, “proceder a eleições”, encarregar da “gestão provisória dos assuntos”, “proclamar a destituição da monarquia, é evidentemente indispensável começar por criar e proclamar um governo revolucionário. Sem essa unificação, sem o reconhecimento geral do governo provisório pelo conjunto do povo revolucionário, sem a transferência da totalidade do poder para esse governo, qualquer “tomada” das administrações, qualquer “proclamação” da República, não passará de um puro e simples gesto de revolta sem alcance sério. A energia revolucionária do povo, se não for concentrada por um governo revolucionário, estará condenada a dispersar-se após o primeiro êxito da insurreição, consumir-se-á em ninharias, perderá a amplitude nacional e não conseguirá conservar aquilo que for tomado nem realizar o que for proclamado.
Repitamo-lo: de facto, na realidade, os social-democratas que se recusam a reconhecer as decisões do III Congresso do POSDR são forçados pelos acontecimentos a agir de acordo com essas mesma decisões e a lançar borda fora as palavras-de-ordem da sua conferência. A revolução educa. A nossa missão é aproveitar as suas lições até à última gota, pôr as nossas palavras-de-ordem tácticas em acordo com a nossa conduta e com as nossas tarefas imediatas, difundir entre as massas ideias correctas sobre essa tarefas imediatas, proceder amplamente e por toda a parte à organização dos operários, com vista ao combate e à insurreição, para a criação do exército revolucionário e a formação do governo revolucionário provisório!
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