Os Sovietes são a forma russa da ditadura proletária. Se o teórico marxista que escreve um trabalho sobre a ditadura do proletariado tivesse estudado realmente este fenómeno (em vez de repetir as lamentações pequeno-burguesas contra a ditadura, como faz Kautsky, repetindo as melodias mencheviques), tal teórico daria uma definição geral de ditadura, e depois teria examinado a sua forma particular, nacional, os Sovietes, criticando-os como uma das formas da ditadura do proletariado.
Compreende-se que nada de sério se pode esperar de Kautsky depois da sua «adaptação» liberal da doutrina de Marx sobre a ditadura. Mas é extremamente característico ver como ele aborda a questão do que são os Sovietes e como resolve esta questão.
Os Sovietes, escreve ele recordando o seu aparecimento em 1905, criaram «uma forma de organização proletária que era a mais ampla (umfassendste) de todas, porque compreendia todos os operários assalariados» (p. 31). Em 1905 eles eram apenas corporações locais, em 1917 transformaram-se numa organização de toda a Rússia.
«A organização soviética tem atrás de si — prossegue Kautsky — uma história grande e gloriosa. E perante ela há ainda uma história mais poderosa, e não apenas na Rússia. Em toda a parte se verifica que os antigos métodos de luta política e económica do proletariado são insuficientes» (versagen; esta palavra alemã é um pouco mais forte que «insuficientes» e um pouco mais fraca que «impotentes») «contra as gigantescas forças de que dispõe o capital financeiro nos aspectos económico e político. Não é possível renunciar a eles, continuam a ser necessários em tempos normais, mas de tempos a tempos colocam-se-lhes tarefas cuja resolução não está nas suas forças, tarefas em que o êxito só se consegue com a união de todos os instrumentos políticos e económicos da força da classe operária»(32).
Segue-se um raciocínio sobre a greve de massas e sobre que «a burocracia dos sindicatos», tão necessária como os sindicatos, «não é capaz de dirigir batalhas de massas tão poderosas que se tornam cada vez mais um sinal dos tempos ...»
«... Assim — conclui Kautsky —, a organização soviética é um dos fenómenos mais importantes do nosso tempo. Ela promete adquirir uma importância decisiva nas grandes batalhas decisivas entre o capital e o trabalho, para as quais nos dirigimos.
Mas teremos o direito de exigir ainda mais aos Sovietes? Os bolcheviques, que depois da Revolução de Novembro (segundo o novo estilo, isto é, de Outubro, segundo o nosso estilo) de 1917, juntamente com os socialistas-revolucionários de esquerda, obtiveram a maioria nos Sovietes russos de deputados operários, depois da dissolução da Assembleia Constituinte transformaram o Soviete, que até então tinha sido organização de combate de uma classe, numa organização estatal. Suprimiram a democracia, que o povo russo tinha conquistado na Revolução de Março (segundo o novo estilo, de Fevereiro segundo o nosso estilo). Em correspondência com isto, os bolcheviques deixaram de chamar-se a si próprios sociais-áemocrafas. Chamam-se a si próprios comunistas» (p. 33, sublinhado de Kautsky).
Quem conheça a literatura menchevique russa verá imeditamente de que maneira servil Kautsky copia Mártov, Axelrod, Stein e C.a Precisamente «servil», pois Kautsky deforma até ao ridículo os factos em proveito dos preconceitos mencheviques. Kautsky, por exemplo, não se deu ao incómodo de perguntar aos seus informadores, do tipo do Stein de Berlim e de Axelrod de Estocolmo, quando é que foram levantadas as questões da mudança de nome dos bolcheviques para comunistas e da importância dos Sovietes como organizações estatais. Se Kautsky tivesse pedido esta simples informação não teria escrito estas linhas que provocam o riso, pois ambas estas questões foram levantadas pelos bolcheviques em Abril de 1917, por exemplo nas minhas «teses» de 4 de Abril de 1917 isto é, muito antes da Revolução de Outubro de 1917 (para já não falar da dissolução da Constituinte em 5 de Janeiro de 1918).
Mas o raciocínio de Kautsky, que reproduzi inteiramente, é o fulcro de toda a questão dos Sovietes. O fulcro está precisamente em saber se os Sovietes devem aspirar a tornar-se organizações estatais (os bolcheviques lançaram em Abril de 1917 a palavra de ordem «todo o poder aos Sovietes», e na conferência do partido dos bolcheviques do mesmo mês de Abril de 1917 os bolcheviques declararam que os não satisfazia uma república parlamentar burguesa, mas que exigiam uma república operária e camponesa do tipo da Comuna ou do tipo dos Sovietes), ou se os Sovietes não devem aspirar a isso, não devem tomar o poder nas suas mãos, não devem tornar-se organizações estatais, mas devem continuar a ser «organizações de combate» duma «classe» (como disse Mártov, embelezando com o seu desejo inocente o facto de que, sob a direcção menchevique, os Sovietes não eram mais do que um instrumento de subordinação dos operários à burguesia). Kautsky repetiu servilmente as palavras de Mártov, tomando fragmentos da discussão teórica dos bolcheviques com os mencheviques e transplantando esses fragmentos, sem crítica e sem sentido, para o terreno teórico geral, europeu geral. O resultado é uma embrulhada que provocaria um riso homérico em qualquer operário russo consciente que tivesse conhecimento do citado raciocínio de Kautsky.
Todos os operários europeus (com excepção de um punhado de empedernidos sociais-imperialistas) acolherão Kautsky com o mesmo riso quando lhes explicarmos do que se trata.
Levando ao absurdo, com extraordinária evidência, o erro de Mártov, Kautsky prestou a Mártov um mau serviço. Com efeito, vejamos ao que chegou Kautsky.
Os Sovietes compreendem todos os operários assalariados. Contra o capital financeiro, os antigos métodos de luta política e económica do proletariado são insuficientes. Os Sovietes têm um grande papel não apenas na Rússia. Desempenharão um papel decisivo nas grandes batalhas decisivas entre o capital e o trabalho na Europa. Assim fala Kautsky.
Muito bem. As «batalhas decisivas entre o capital e o trabalho» não decidirão a questão de qual destas classes se apoderará do poder de Estado?
Nada disso. Deus nos livre.
Nas batalhas «decisivas», os Sovietes, que abrangem todos os operários assalariados, não devem tornar-se organizações estatais!
Mas o que é o Estado?
O Estado não é mais que uma máquina para a repressão duma classe por outra.
Assim, a classe oprimida, a vanguarda de todos os trabalhadores e explorados na sociedade contemporânea, deve aspirar às «batalhas decisivas entre o capital e o trabalho», mas não deve tocar na máquina por meio da qual o capital reprime o trabalho! — Não deve quebrar esta máquina! — Não deve empregar a sua organização ampla para reprimir os exploradores!
Magnífico, admirável, senhor Kautsky! «Nós» reconhecemos a luta de classes como a reconhecem todos os liberais, isto é, sem o derrubamento da burguesia ...
E aqui que se torna evidente a total ruptura de Kautsky tanto com o marxismo como com o socialismo. Isto é, de facto, passar para o lado da burguesia, que está disposta a admitir tudo o que se queira, menos a transformação das organizações da classe que ela oprime em organizações estatais. Aqui já não há maneira de Kautsky salvar a sua posição, de conciliar tudo e eludir com frases todas as contradições profundas.
Ou Kautsky renuncia a qualquer passagem do poder de Estado para as mãos da classe operária, ou admite que a classe operária tome nas suas mãos a velha máquina de Estado, burguesa, mas não admite de modo algum que a quebre e a destrua substituindo-a por uma nova, proletária. Que se «interprete» ou se «explique» dum ou doutro modo o raciocínio de Kautsky, em ambos os casos é evidente a ruptura com o marxismo e a passagem para o lado da burguesia.
Já no Manifesto Comunista, ao falar do Estado necessário à classe operária vitoriosa, Marx escrevia: «o Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante»[N30]. E eis agora que um homem com a pretensão de que continua a ser marxista declara que o proletariado totalmente organizado e que conduz uma «luta decisiva» contra o capital não deve fazer da sua organização de classe uma organização estatal. «Fé supersticiosa no Estado», que, como escrevia Engels em 1891, «se transpôs na Alemanha para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários»[N31] — eis o que Kautsky revelou aqui. Lutai, operários — «concede» o nosso filisteu (o burguês também o «concede», porque de qualquer modo os operários lutam e é preciso apenas pensar em como embotar o fio da sua espada) —, lutai, mas não ouseis vencer! Não destruais a máquina de Estado da burguesia, não coloqueis no lugar da «organização estatal» burguesa a «organização estatal» proletária!
Quem compartilhasse seriamente a concepção marxista de que o Estado não é mais do que uma máquina para a repressão duma classe por outra, quem reflectisse minimamente nesta verdade, nunca teria podido chegar ao absurdo de que as organizações proletárias, capazes de vencer o capital financeiro, não devem transformar-se em organizações estatais. É precisamente neste ponto que se manifesta o pequeno burguês, para o qual o Estado é, «apesar de tudo», algo fora das classes ou acima das classes. Com efeito, porque é que seria permitido ao proletariado, «uma só classe», conduzir uma guerra decisiva contra o capital, que exerce a sua dominação não só sobre o proletariado mas sobre todo o povo, sobre toda a pequena burguesia, sobre todo o campesinato, mas não seria permitido ao proletariado, «uma só classe», transformar a sua organização em organização estatal? Porque o pequeno burguês teme a luta de classes e não a leva até ao fim, até ao principal.
Kautsky meteu-se numa completa embrulhada e desmascarou-se. Notai que ele próprio reconheceu que a Europa se dirige para batalhas decisivas entre o capital e o trabalho e que os antigos métodos de luta política e económica do proletariado são insuficientes. Mas esses métodos consistiam, precisamente, em utilizar a democracia burguesa. Portanto?. . .
Kautsky teve receio de pensar no que daqui decorre.
. . . Portanto, só um reaccionário, um inimigo da classe operária, um lacaio da burguesia, pode pintar agora os encantos da democracia burguesa e pairar acerca da democracia pura, voltando-se para um passado já caduco. A democracia burguesa foi progressiva em relação à Idade Média, e era preciso utilizá-la. Mas agora é insuficiente para a classe operária. Agora é preciso olhar não para trás, mas para a frente, para a substituição da democracia burguesa pela democracia proletária. E se o trabalho preparatório da revolução proletária, a educação e a formação do exército proletário foram possíveis (e necessários) no quadro do Estado democrático burguês, limitar o proletariado neste quadro uma vez que se chegou às «batalhas decisivas», é trair a causa proletária, é ser um renegado.
Kautsky caiu numa situação particularmente ridícula, pois repetiu o argumento de Mártov sem notar que em Mártov este argumento se apoia num outro que em Kautsky não existe! Mártov diz (e Kautsky repete atrás dele) que a Rússia ainda não está madura para o socialismo, donde resulta naturalmente que é ainda cedo para transformar os Sovietes, de órgãos de luta, em organizações estatais (leia-se: o que é oportuno é transformar os Sovietes, com a ajuda dos chefes mencheviques, em órgãos de subordinação dos operários à burguesia imperialista). Ora Kautsky não pode dizer abertamente que a Europa não está madura para o socialismo. Em 1909, quando ainda não era um renegado, Kautsky escreveu que então não havia que ter medo duma revolução prematura, que quem renunciasse à revolução por medo da derrota seria um traidor. Kautsky não se atreve a retractar-se explicitamente. Daí resulta um tal absurdo que desmascara inteiramente toda a estupidez e a cobardia do pequeno burguês: por um lado, a Europa está madura para o socialismo e caminha para as batalhas decisivas entre o trabalho e o capital; mas, por outro lado, a organização de combate (isto é, que se está a formar, a crescer e a fortalecer na luta), a organização do proletariado, vanguarda e organizador, guia dos oprimidos, não pode transformar-se em organização estatal!
No aspecto político prático, a ideia de que os Sovietes são necessários como organização de combate, mas que não devem transformar-se em organizações estatais, é ainda infinitamente mais absurda do que no aspecto teórico. Mesmo em tempo de paz, quando não existe uma situação revolucionária, a luta de massas dos operários contra os capitalistas, por exemplo a greve de massas, provoca em ambas as partes uma exasperação terrível, uma extraordinária paixão na luta, constantes referências da burguesia a que é e quer continuar a ser «senhora da sua casa», etc. E em tempo de revolução, quando a vida política está em efervescência, uma organização como os Sovietes, que abrange todos os operários de todos os ramos da indústria, e depois todos os soldados e toda a população trabalhadora e pobre do campo, é uma organização que por si mesma, pela marcha da luta, pela simples «lógica» do ataque e da resposta é necessariamente levada a colocar a questão de forma decisiva. Tentar tomar uma posição intermédia, « conciliar» o proletariado e a burguesia, é uma cretinice destinada a um fracasso lamentável: foi isso que aconteceu na Rússia com a prédica de Mártov e outros mencheviques, é isso que inevitavelmente acontecerá na Alemanha e noutros países se os Sovietes se desenvolverem com alguma amplitude, se conseguirem unir-se e consolidar-se. Dizer aos Sovietes: lutai mas não tomeis todo o poder de Estado nas vossas mãos, não vos transformeis em organizações estatais, significa pregar a colaboração de classes e a «paz social» entre o proletariado e a burguesia. É ridículo pensar sequer que, numa luta encarniçada, semelhante posição possa conduzir a outra coisa que não seja uma falência vergonhosa. O destino eterno de Kautsky é sentar-se entre duas cadeiras. Finge não estar de acordo em nada com os oportunistas na teoria, mas, de facto, está de acordo com eles na prática em todas as questões essenciais (isto é, em tudo o que diz respeito à revolução).
Compreende-se que nada de sério se pode esperar de Kautsky depois da sua «adaptação» liberal da doutrina de Marx sobre a ditadura. Mas é extremamente característico ver como ele aborda a questão do que são os Sovietes e como resolve esta questão.
Os Sovietes, escreve ele recordando o seu aparecimento em 1905, criaram «uma forma de organização proletária que era a mais ampla (umfassendste) de todas, porque compreendia todos os operários assalariados» (p. 31). Em 1905 eles eram apenas corporações locais, em 1917 transformaram-se numa organização de toda a Rússia.
«A organização soviética tem atrás de si — prossegue Kautsky — uma história grande e gloriosa. E perante ela há ainda uma história mais poderosa, e não apenas na Rússia. Em toda a parte se verifica que os antigos métodos de luta política e económica do proletariado são insuficientes» (versagen; esta palavra alemã é um pouco mais forte que «insuficientes» e um pouco mais fraca que «impotentes») «contra as gigantescas forças de que dispõe o capital financeiro nos aspectos económico e político. Não é possível renunciar a eles, continuam a ser necessários em tempos normais, mas de tempos a tempos colocam-se-lhes tarefas cuja resolução não está nas suas forças, tarefas em que o êxito só se consegue com a união de todos os instrumentos políticos e económicos da força da classe operária»(32).
Segue-se um raciocínio sobre a greve de massas e sobre que «a burocracia dos sindicatos», tão necessária como os sindicatos, «não é capaz de dirigir batalhas de massas tão poderosas que se tornam cada vez mais um sinal dos tempos ...»
«... Assim — conclui Kautsky —, a organização soviética é um dos fenómenos mais importantes do nosso tempo. Ela promete adquirir uma importância decisiva nas grandes batalhas decisivas entre o capital e o trabalho, para as quais nos dirigimos.
Mas teremos o direito de exigir ainda mais aos Sovietes? Os bolcheviques, que depois da Revolução de Novembro (segundo o novo estilo, isto é, de Outubro, segundo o nosso estilo) de 1917, juntamente com os socialistas-revolucionários de esquerda, obtiveram a maioria nos Sovietes russos de deputados operários, depois da dissolução da Assembleia Constituinte transformaram o Soviete, que até então tinha sido organização de combate de uma classe, numa organização estatal. Suprimiram a democracia, que o povo russo tinha conquistado na Revolução de Março (segundo o novo estilo, de Fevereiro segundo o nosso estilo). Em correspondência com isto, os bolcheviques deixaram de chamar-se a si próprios sociais-áemocrafas. Chamam-se a si próprios comunistas» (p. 33, sublinhado de Kautsky).
Quem conheça a literatura menchevique russa verá imeditamente de que maneira servil Kautsky copia Mártov, Axelrod, Stein e C.a Precisamente «servil», pois Kautsky deforma até ao ridículo os factos em proveito dos preconceitos mencheviques. Kautsky, por exemplo, não se deu ao incómodo de perguntar aos seus informadores, do tipo do Stein de Berlim e de Axelrod de Estocolmo, quando é que foram levantadas as questões da mudança de nome dos bolcheviques para comunistas e da importância dos Sovietes como organizações estatais. Se Kautsky tivesse pedido esta simples informação não teria escrito estas linhas que provocam o riso, pois ambas estas questões foram levantadas pelos bolcheviques em Abril de 1917, por exemplo nas minhas «teses» de 4 de Abril de 1917 isto é, muito antes da Revolução de Outubro de 1917 (para já não falar da dissolução da Constituinte em 5 de Janeiro de 1918).
Mas o raciocínio de Kautsky, que reproduzi inteiramente, é o fulcro de toda a questão dos Sovietes. O fulcro está precisamente em saber se os Sovietes devem aspirar a tornar-se organizações estatais (os bolcheviques lançaram em Abril de 1917 a palavra de ordem «todo o poder aos Sovietes», e na conferência do partido dos bolcheviques do mesmo mês de Abril de 1917 os bolcheviques declararam que os não satisfazia uma república parlamentar burguesa, mas que exigiam uma república operária e camponesa do tipo da Comuna ou do tipo dos Sovietes), ou se os Sovietes não devem aspirar a isso, não devem tomar o poder nas suas mãos, não devem tornar-se organizações estatais, mas devem continuar a ser «organizações de combate» duma «classe» (como disse Mártov, embelezando com o seu desejo inocente o facto de que, sob a direcção menchevique, os Sovietes não eram mais do que um instrumento de subordinação dos operários à burguesia). Kautsky repetiu servilmente as palavras de Mártov, tomando fragmentos da discussão teórica dos bolcheviques com os mencheviques e transplantando esses fragmentos, sem crítica e sem sentido, para o terreno teórico geral, europeu geral. O resultado é uma embrulhada que provocaria um riso homérico em qualquer operário russo consciente que tivesse conhecimento do citado raciocínio de Kautsky.
Todos os operários europeus (com excepção de um punhado de empedernidos sociais-imperialistas) acolherão Kautsky com o mesmo riso quando lhes explicarmos do que se trata.
Levando ao absurdo, com extraordinária evidência, o erro de Mártov, Kautsky prestou a Mártov um mau serviço. Com efeito, vejamos ao que chegou Kautsky.
Os Sovietes compreendem todos os operários assalariados. Contra o capital financeiro, os antigos métodos de luta política e económica do proletariado são insuficientes. Os Sovietes têm um grande papel não apenas na Rússia. Desempenharão um papel decisivo nas grandes batalhas decisivas entre o capital e o trabalho na Europa. Assim fala Kautsky.
Muito bem. As «batalhas decisivas entre o capital e o trabalho» não decidirão a questão de qual destas classes se apoderará do poder de Estado?
Nada disso. Deus nos livre.
Nas batalhas «decisivas», os Sovietes, que abrangem todos os operários assalariados, não devem tornar-se organizações estatais!
Mas o que é o Estado?
O Estado não é mais que uma máquina para a repressão duma classe por outra.
Assim, a classe oprimida, a vanguarda de todos os trabalhadores e explorados na sociedade contemporânea, deve aspirar às «batalhas decisivas entre o capital e o trabalho», mas não deve tocar na máquina por meio da qual o capital reprime o trabalho! — Não deve quebrar esta máquina! — Não deve empregar a sua organização ampla para reprimir os exploradores!
Magnífico, admirável, senhor Kautsky! «Nós» reconhecemos a luta de classes como a reconhecem todos os liberais, isto é, sem o derrubamento da burguesia ...
E aqui que se torna evidente a total ruptura de Kautsky tanto com o marxismo como com o socialismo. Isto é, de facto, passar para o lado da burguesia, que está disposta a admitir tudo o que se queira, menos a transformação das organizações da classe que ela oprime em organizações estatais. Aqui já não há maneira de Kautsky salvar a sua posição, de conciliar tudo e eludir com frases todas as contradições profundas.
Ou Kautsky renuncia a qualquer passagem do poder de Estado para as mãos da classe operária, ou admite que a classe operária tome nas suas mãos a velha máquina de Estado, burguesa, mas não admite de modo algum que a quebre e a destrua substituindo-a por uma nova, proletária. Que se «interprete» ou se «explique» dum ou doutro modo o raciocínio de Kautsky, em ambos os casos é evidente a ruptura com o marxismo e a passagem para o lado da burguesia.
Já no Manifesto Comunista, ao falar do Estado necessário à classe operária vitoriosa, Marx escrevia: «o Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante»[N30]. E eis agora que um homem com a pretensão de que continua a ser marxista declara que o proletariado totalmente organizado e que conduz uma «luta decisiva» contra o capital não deve fazer da sua organização de classe uma organização estatal. «Fé supersticiosa no Estado», que, como escrevia Engels em 1891, «se transpôs na Alemanha para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários»[N31] — eis o que Kautsky revelou aqui. Lutai, operários — «concede» o nosso filisteu (o burguês também o «concede», porque de qualquer modo os operários lutam e é preciso apenas pensar em como embotar o fio da sua espada) —, lutai, mas não ouseis vencer! Não destruais a máquina de Estado da burguesia, não coloqueis no lugar da «organização estatal» burguesa a «organização estatal» proletária!
Quem compartilhasse seriamente a concepção marxista de que o Estado não é mais do que uma máquina para a repressão duma classe por outra, quem reflectisse minimamente nesta verdade, nunca teria podido chegar ao absurdo de que as organizações proletárias, capazes de vencer o capital financeiro, não devem transformar-se em organizações estatais. É precisamente neste ponto que se manifesta o pequeno burguês, para o qual o Estado é, «apesar de tudo», algo fora das classes ou acima das classes. Com efeito, porque é que seria permitido ao proletariado, «uma só classe», conduzir uma guerra decisiva contra o capital, que exerce a sua dominação não só sobre o proletariado mas sobre todo o povo, sobre toda a pequena burguesia, sobre todo o campesinato, mas não seria permitido ao proletariado, «uma só classe», transformar a sua organização em organização estatal? Porque o pequeno burguês teme a luta de classes e não a leva até ao fim, até ao principal.
Kautsky meteu-se numa completa embrulhada e desmascarou-se. Notai que ele próprio reconheceu que a Europa se dirige para batalhas decisivas entre o capital e o trabalho e que os antigos métodos de luta política e económica do proletariado são insuficientes. Mas esses métodos consistiam, precisamente, em utilizar a democracia burguesa. Portanto?. . .
Kautsky teve receio de pensar no que daqui decorre.
. . . Portanto, só um reaccionário, um inimigo da classe operária, um lacaio da burguesia, pode pintar agora os encantos da democracia burguesa e pairar acerca da democracia pura, voltando-se para um passado já caduco. A democracia burguesa foi progressiva em relação à Idade Média, e era preciso utilizá-la. Mas agora é insuficiente para a classe operária. Agora é preciso olhar não para trás, mas para a frente, para a substituição da democracia burguesa pela democracia proletária. E se o trabalho preparatório da revolução proletária, a educação e a formação do exército proletário foram possíveis (e necessários) no quadro do Estado democrático burguês, limitar o proletariado neste quadro uma vez que se chegou às «batalhas decisivas», é trair a causa proletária, é ser um renegado.
Kautsky caiu numa situação particularmente ridícula, pois repetiu o argumento de Mártov sem notar que em Mártov este argumento se apoia num outro que em Kautsky não existe! Mártov diz (e Kautsky repete atrás dele) que a Rússia ainda não está madura para o socialismo, donde resulta naturalmente que é ainda cedo para transformar os Sovietes, de órgãos de luta, em organizações estatais (leia-se: o que é oportuno é transformar os Sovietes, com a ajuda dos chefes mencheviques, em órgãos de subordinação dos operários à burguesia imperialista). Ora Kautsky não pode dizer abertamente que a Europa não está madura para o socialismo. Em 1909, quando ainda não era um renegado, Kautsky escreveu que então não havia que ter medo duma revolução prematura, que quem renunciasse à revolução por medo da derrota seria um traidor. Kautsky não se atreve a retractar-se explicitamente. Daí resulta um tal absurdo que desmascara inteiramente toda a estupidez e a cobardia do pequeno burguês: por um lado, a Europa está madura para o socialismo e caminha para as batalhas decisivas entre o trabalho e o capital; mas, por outro lado, a organização de combate (isto é, que se está a formar, a crescer e a fortalecer na luta), a organização do proletariado, vanguarda e organizador, guia dos oprimidos, não pode transformar-se em organização estatal!
No aspecto político prático, a ideia de que os Sovietes são necessários como organização de combate, mas que não devem transformar-se em organizações estatais, é ainda infinitamente mais absurda do que no aspecto teórico. Mesmo em tempo de paz, quando não existe uma situação revolucionária, a luta de massas dos operários contra os capitalistas, por exemplo a greve de massas, provoca em ambas as partes uma exasperação terrível, uma extraordinária paixão na luta, constantes referências da burguesia a que é e quer continuar a ser «senhora da sua casa», etc. E em tempo de revolução, quando a vida política está em efervescência, uma organização como os Sovietes, que abrange todos os operários de todos os ramos da indústria, e depois todos os soldados e toda a população trabalhadora e pobre do campo, é uma organização que por si mesma, pela marcha da luta, pela simples «lógica» do ataque e da resposta é necessariamente levada a colocar a questão de forma decisiva. Tentar tomar uma posição intermédia, « conciliar» o proletariado e a burguesia, é uma cretinice destinada a um fracasso lamentável: foi isso que aconteceu na Rússia com a prédica de Mártov e outros mencheviques, é isso que inevitavelmente acontecerá na Alemanha e noutros países se os Sovietes se desenvolverem com alguma amplitude, se conseguirem unir-se e consolidar-se. Dizer aos Sovietes: lutai mas não tomeis todo o poder de Estado nas vossas mãos, não vos transformeis em organizações estatais, significa pregar a colaboração de classes e a «paz social» entre o proletariado e a burguesia. É ridículo pensar sequer que, numa luta encarniçada, semelhante posição possa conduzir a outra coisa que não seja uma falência vergonhosa. O destino eterno de Kautsky é sentar-se entre duas cadeiras. Finge não estar de acordo em nada com os oportunistas na teoria, mas, de facto, está de acordo com eles na prática em todas as questões essenciais (isto é, em tudo o que diz respeito à revolução).
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