quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Posfácio. Mais Uma Vez o Osvobojdenismo, Mais Uma Vez o Neo-Iskrismo


Os números 71-72 da Osvobojdénie e 102-103 do Iskra oferecem-nos um novo material, extraordinariamente rico, sobre a questão a que dedicámos o § 8 da nossa brochura. Não tendo possibilidade alguma de utilizar aqui todo este rico material, deter-nos-emos apenas no principal: em primeiro lugar, que tipo de «realismo» da social-democracia elogia a Osvobojdénie e porque deve elogiá-lo; em segundo lugar, a relação entre os conceitos: revolução e ditadura.
I. Porque É Que os Realistas Liberal-Burgueses Elogiam os «Realistas» Sociais-Democratas?
Os artigos A Cisão na Social-Democracia Russa e O Triunfo do Bom Senso (Osvobojdénie, n.° 72) são um juízo de representantes da burguesia liberal sobre a social-democracia extraordinariamente valioso para os proletários conscientes. Nunca será de mais recomendar a cada social-democrata conhecer estes artigos na sua totalidade e meditar sobre cada uma das suas frases. Reproduziremos, antes de mais, as principais posições de ambos os artigos:
«Para quem observa de fora - diz a Osvobojdénie - é bastante difícil apreender o sentido político real da divergência que dividiu o partido social-democrata em duas fracções. Qualificar a fracção da 'maioria' como mais radical e intransigente, ao contrário da 'minoria', que admite, no interesse da causa, alguns compromissos, não é totalmente exacto, e, de qualquer forma, não representa uma caracterização exaustiva. Pelo menos os dogmas tradicionais da ortodoxia marxista são observados talvez com maior zelo pela fracção da minoria do que pela fracção de Lénine. Parece-nos que é mais precisa a seguinte caracterização. O estado de espírito político fundamental da «maioria» é um revolucionarísmo abstracto, um revoltismo, o afã de provocar por todos os meios a insurreição na massa popular e em seu nome tomar o poder imediatamente; isto, até certo grau, aproxima os 'leninistas' dos socialistas-revolucíonários e encobre na sua consciência a idéia da luta de classes com a ideia de uma revolução russa de todo o povo; negando na prática muitas das estreitezas da doutrina social-democrata, os 'íeninistas', por outro lado, estão profundamente imbuídos da estreiteza do revolucionarismo, renunciam a qualquer trabalho prático que não seja a preparação da insurreição imediata, ignoram por princípio todas as formas de agitação legal e semilegal e todo o tipo de compromissos práticos e úteis com outras tendências oposícionistas. Pelo contrário, a minoria, fortemente aferrada aos dogmas do marxismo, conserva ao mesmo tempo os elementos realistas da concepção marxista do mundo. A ideia fundamental desta fracção é a contraposição dos interesses do 'proletariado' aos interesses da burguesia. Mas, por outro lado, a luta do proletariado é concebida — naturalmente dentro de certos limites, ditados pelos dogmas imutáveis da social-democracia — de maneira sensata e realista, com uma consciência clara de todas as condições e tarefas concretas desta luta. Ambas as fracções aplicam o seu ponto de vista fundamentai de modo não totalmente consequente, pois estão ligadas no seu trabalho criador ideológico-político às fórmulas rigorosas do catecismo social-democrata, que impedem os 'leninistas' de se converterem em rebeldes intransigentes, à maneira, pelo menos, de alguns socialistas-revolucíonários, e os 'ískristas' de se converterem em dirigentes práticos do movimento político real da classe operária.»
E expondo mais adiante o conteúdo das principais resoluções, o escritor da Osvobojdénie esclarece os seus «pensamentos" gerais com algumas observações concretas em relação a elas. Em comparação com o III congresso, diz ele:
«a conferência da minoria observa uma atitude completamente diferente em relação à insurreição armada». «Relacionada com a atitude para com a insurreição armada» surge a diferença das resoluções sobre o governo provisório. «A mesma divergência se manifesta na atitude em relação aos sindicatos operários. Os 'leninistas' não disseram nas suas resoluções nem uma palavra sobre este importantíssimo ponto de partida da educação política e da organização da classe operária. A minoria, pelo contrário, elaborou uma resolução muito séria.» Quanto à atitude face aos liberais, ambas as fracções, diz ele, coincidem, mas o III congresso "repete quase palavra por palavra a resolução de Plekhánov sobre a atitude face aos liberais, adoptada no II congresso, e rejeita a resolução de Starover, mais favorável aos liberais, adoptada no mesmo congresso». Sendo em geral coincidentes as resoluções do congresso e da conferência sobre o movimento camponês, «a 'maioria' sublinha mais a ideia da confiscação revolucionária das terras dos latifundiários e outras, enquanto a 'minoria* quer fazer da reivindicação de reformas democráticas estatais e administrativas a base da sua agitação».
Finalmente, a Osvobojdénie cita do n.° 100 do Iskra uma resolução menchevique cujo ponto principal diz:
«Visto que actualmente o trabalho clandestino por si só não assegura à massa a sua participação suficiente na vida do partido e em parte leva a opor a massa, como tal, ao partido, como organização ilegal, este último precisa de tomar nas suas mãos a direcção da luta sindical dos operários no terreno legal, coordenando estritamente esta luta com as tarefas sociais-democratas.»
A respeito desta resolução, a Osvobojdénie exclama:
«Saudamos calorosamente esta resolução como o triunfo do bom senso, como expressão de lucidez táctica de uma certa parte do partido social-democrata.»
Agora tem o leitor diante de si todas as apreciações fundamentais da Osvobojdénie. Seria o maior dos erros, naturalmente, considerar acertadas estas apreciações no sentido da sua concordância com a verdade objectiva. Todo o social-democrata descobrirá facilmente netas erros a cada passo. Seria ingenuidade esquecer que todas estas apreciações estão profundamente penetradas pelos interesses e pelo ponto de vista da burguesia liberal e que neste sentido são extremamente parciais e tendenciosas. Reflectem as ideias da social-democracia tal como um espelho côncavo ou convexo reflecte os objectos. Mas seria um erro ainda maior esquecer que estas apreciações deformadas à maneira da burguesia reflectem, no fim de contas, os interesses reais da burguesia, que, como classe, compreende acertadamente sem dúvida nenhuma quais as tendências dentro da social-democracia que lhe são, à burguesia, vantajosas, próximas, afins, simpáticas, e quais lhe são prejudiciais, alheias, estranhas, antipáticas. Um filósofo burguês ou um publicista burguês nunca compreenderá correctamente a social-democracia, nem a social-democracia menchevique nem a bolchevique. Mas se for um publicista minimamente inteligente, o seu instinto de classe não o enganará e captará sempre no fundo com justeza a significação que para a burguesia tenha esta ou aquela tendência dentro da social-democracia, ainda que a deforme ao expô-la. O instinto de classe do nosso inimigo, a sua apreciação de classe, merecem sempre, por isso, a mais séria atenção de todo o proletariado consciente.
Que nos diz pois, pela boca dos osvobojdenistas, o instinto de classe da burguesia da Rússia?
Exprime de uma maneira perfeitamente precisa a sua satisfação com as tendências do neo-iskrismo, elogiando-o pelo seu realismo, pela sua sensatez, pelo triunfo do bom senso, pela seriedade das resoluções, pela sua clara visão táctica, pelo seu espírito prático, etc, e exprime o seu descontentamento pelas tendências do III congresso, censurando-o pela sua estreiteza, o seu revolucionarismo, o seu revoltismo, a sua recusa dos compromissos úteis do ponto de vista prático, etc. O instinto de classe da burguesia sugere-lhe exactamente o que foi repetidamente demonstrado na nossa literatura com os dados mais exactos, a saber: que os neo-iskristas são a ala oportunista na actual social-democracia russa e os seus adversários a ala revolucionária. Os liberais não podem deixar de ter simpatia pelas tendências da primeira, não podem deixar de censurar as tendências da segunda. Os liberais, como ideólogos da burguesia, compreendem perfeitamente que são vantajosos para a burguesia «o espíritt prático, a sensatez, a seriedade» da classe operária, isto é, a limitação de facto do seu campo de actividade no quadro do capitalismo, das reformas, da luta sindical, etc. Para a burguesia é perigosa e temível estreiteza revolucionarista» do proletariado e a sua aspiração a conseguir, em nome das suas tarefas de classe, o papel dirigente na revolução russa de todo o povo.
Que este é efectivamente o sentido da palavra «realismo» na interpretação da Osvobojdénie, é o que se pode ver entre outras coisas no emprego que dela fizeram anteriormente a Osvobojdénie e o Sr. Struve . O próprio Iskra não pôde deixar de reconhecer que o «realismo» nos osvobojdenistas tinha esta significação. Recordai-vos, por exemplo, do artigo intitulado Já É Tempo!, publicado no suplemento aos n.º 73-74 do Iskra. O autor do artigo (representante consequente das concepções do «pântano» no II congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia) expressou francamente a sua opinião de que «Akímov desempenhou no congresso mais o papel de espectro do oportunismo do que o de seu verdadeiro representante». E a redacção do Iskra viu-se imediatamente obrigada a rectificar o autor do artigo Já É Tempo!, declarando numa nota:
«Não se pode estar de acordo com esta opinião. Os pontos de vista programáticos do camarada Akímov estão claramente marcados com o selo do oportunismo, coisa que também reconhece o crítico da Osvobojdénie num dos seus últimos números, assinalando que o camarada Akímov pertence à tendência 'realista' - ler: revisionista."
Assim, o próprio Iskra sabe perfeitamente que o «realismo» osvobojdenista é simplesmente oportunismo e nada mais. Se agora, ao atacar o «realismo liberal» (n.° 102 do Iskra), o Iskra silencia que os liberais o elogiaram pelo seu realismo, este silêncio explica-se pelo facto de que tais elogios são mais amargos do que qualquer censura. Tais elogios (que da parte da Osvobojdénie não são casuais nem feitos pela primeira vez) demonstram de facto o parentesco do realismo liberal e destas tendências do «realismo» (ler: oportunismo) social-democrata que transparecem em cada resolução dos neo-iskristas devido à falsidade de toda a sua posição táctica.
Com efeito, a burguesia da Rússia manifestou já plenamente a sua inconsequência e o seu egoísmo na revolução «de todo o povo», manifestou-os tanto pelas reflexões do Sr. Struve como por todo o tom e pelo conteúdo de toda uma massa de jornais liberais, pelo carácter das intervenções políticas de uma multidão de zemtsi, de uma multidão de intelectuais, em geral de todos os partidários dos Srs. Trubetskói, Petrunkévitch, Róditchev e C.a. A burguesia, evidentemente, nem sempre compreende claramente, mas em geral apercebe-se perfeitamente por intuição de classe de que, por um lado, o proletariado e o «povo» são úteis para a sua revolução como carne de canhão, como aríete contra a autocracia, mas que, por outro lado, o proletariado e o campesinato revolucionário são terrivelmente perigosos para ela no caso de alcançarem «a vitória decisiva sobre o tsarismo» e levarem até ao fim a revolução democrática. Por isso, a burguesia procura por todos os meios que o proletariado se conforme em desempenhar um papel «modesto» na revolução, que seja mais sensato, mais prático, mais realista, que a sua actividade seja determinada pelo princípio: «que a burguesia não se afaste».
Os burgueses cultos sabem perfeitamente que não poderão desembaraçar-se do movimento operário. Por isso não se pronunciam de modo algum contra o movimento operário, contra a luta de classe do proletariado — não, fazem mesmo toda a espécie de reverências perante a liberdade de greve, a luta de classes civilizada, compreendendo o movimento operário e a luta de classes à maneira de Brentano ou de Hirsch-Duncker. Por outras palavras, estão inteiramente dispostos a «conceder» aos operários a liberdade de greve e de associação (de facto já quase conquistada pelos próprios operários), desde que os operários renunciem ao «revoltismo», ao «revolucionarismo estreito», à hostilidade aos «compromissos úteis do ponto de vista prático», à pretensão e ao desejo de imprimir «à revolução russa de todo o povo» o selo da sua luta de classe, o selo da consequência proletária, da decisão proletária, do «jacobinismo plebeu». Os burgueses cultos de toda a Rússia procuram com todas as forças, por mil meios e caminhos — livros(31*), conferências, discursos, palestras, etc, etc — inculcar nos operários as ideias da sobriedade (burguesa), do espírito prático (liberal), do realismo (oportunista), da luta de classes (à maneira de Brentano), dos sindicatos (à maneira de Hirsch-Duncker), etc. As duas últimas paíavras de ordem são particularmente cómodas para os burgueses do partido «democrata-constitucionalista» ou «da libertação», uma vez que na aparência coincidem com as marxistas, uma vez que, com algumas pequenas omissões e ligeiras deturpações, é muito fácil confundi-las com as sociais-democratas e às vezes até fazê-las passar por sociais-democratas. Assim, por exemplo, o jornal legal liberal Rassvet (sobre o qual tentaremos um dia falar com mais pormenor com os leitores do Proletári) diz frequentemente coisas tão «audaciosas» sobre a luta de classes, sobre a possibilidade de que a burguesia engane o proletariado, sobre o movimento operário, sobre a iniciativa do proletariado, etc, etc, que o leitor pouco atento e o operário pouco esclarecido tomarão facilmente o seu «espírito social-democrata» como moeda verdadeira. Mas de facto isto é uma falsificação burguesa do espírito social-democrata, uma deturpação e uma deformação oportunista do conceito da luta de classes.
No fundo desta gigantesca falsificação burguesa (gigantesca pela amplitude da sua influência sobre as massas) encontra-se a tendência para reduzir o movimento operário principalmente a um movimento sindical, a mantê-lo afastado de uma política independente (isto é, revolucionária e orientada para a ditadura democrática), a «encobrir na consciência dos operários a ideia da revolução russa de todo o povo com a ideia da luta de classes».
Como o leitor vê, pusemos de pernas para o ar a formulação da Osvobojdénie. É uma excelente formulação, que exprime perfeitamente duas opiniões sobre o papel do proletariado na revolução democrática, a opinião burguesa e a opinião social-democrata. A burguesia quer reduzir o proletariado unicamente ao movimento sindical e desta maneira «encobrir na sua consciência a ideia da revolução russa de todo o povo com a idéia da luta de classes» (à maneira de Brentano), exactamente como os autores bernsteinianos do Credo encobriam na consciência dos operários a idéia da luta política com a ideia do movimento «puramente operário». A social-democracia quer, pelo contrário, desenvolver a luta de classe do proletariado até à sua participação dirigente na revolução russa de todo o povo, isto é, conduzir esta revolução até à ditadura democrática do proletariado e do campesinato.
A revolução no nosso país é de todo o povo, diz a burguesia ao proletariado. Por isso tu, como classe particular, deves limitar-te à tua luta de classe, deves, em nome do «bom senso», dirigir a tua atenção principal para os sindicatos e para a sua legalização, deves considerar precisamente estes sindicatos «como o ponto de partida mais importante para a tua educação política e para a tua organização», deves elaborar nos momentos revolucionários principalmente resoluções sérias, semelhantes à dos neo-ískristas, deves tratar com solicitude as resoluções «mais favoráveis aos liberais», deves preferir os dirigentes que têm tendência para se converterem em «dirigentes práticos do movimento político real da classe operária», deves conservar «os elementos realistas da concepção marxista do mundo» (se lamentavelmente já tiveres sido contagiado pelas «fórmulas rigorosas» deste catecismo «não científico»).
A revolução no nosso país é de todo o povo, diz a social-democracia ao proletariado. Por isso tu deves, como a classe mais avançada e a única revolucionária até ao fim, esforçar-te não só por participar nela da maneira mais enérgica, mas também por desempenhar nela um papel dirigente. Por isso tu não deves encerrar-te no quadro concebido estreitamente da luta de classe, sobretudo no sentido do movimento sindical, mas, pelo contrário, deves esforçar-te por ampliar este quadro e o conteúdo da tua luta de classe até abarcar neste quadro não só todas as tarefas da actual revolução democrática russa de todo o povo mas também as tarefas da futura revolução socialista. Por isso, sem ignorar o movimento sindical, sem renunciar a aproveitar a mais pequena margem de legalidade, tu deves na época da revolução trazer para primeiro plano as tarefas da insurreição armada, da criação de um exército revolucionário e de um governo revolucionário, como únicas vias para a vitória completa do povo sobre o tsarismo, para a conquista da república democrática e da verdadeira liberdade política.
Seria supérfluo dizer que atitude equívoca, inconsequente e, naturalmente, simpática à burguesia adoptaram nesta questão as resoluções neo-iskristas, devido à sua «linha» errada.
II. Novo «Aprofundamento» da Questão pelo Camarada Mariínov
Passemos aos artigos de Martínov nos n.° 102 e 103 do Iskra. É evidente que não responderemos às tentativas de Martínov para demonstrar a falsidade da nossa interpretação de uma série de citações de Engels e Marx e a justeza da sua. Estas tentativas são tão pouco sérias, os subterfúgios de Martínov são tão evidentes, a questão é tão clara que não teria nenhum interesse determo-nos nelas mais uma vez. Qualquer leitor que pense discernirá facilmente os ardis ingénuos de Martínov na sua retirada em toda a linha, sobretudo quando forem publicadas as traduções completas das brochuras Os Bakuninistas em Acção, de Engels, e Mensagem da Direcção da Liga dos Comunistas, de Marx, de Março de 1850[N261], preparadas por um grupo de colaboradores do Proletári. Bastará uma só citação do artigo de Martínov para que o leitor veja claramente a sua retirada.
O Iskra «reconhece» — diz Martínov no n.° 103 — «a formação de um governo provisório como uma das vias possíveis e convenientes de desenvolvimento da revolução e nega a conveniência da participação dos sociais-democratas num governo provisório burguês, precisamente no interesse da conquista total no futuro da máquina do Estado para a revolução socialista». Por outras palavras: o Iskra reconheceu agora como eram absurdos todos os temores de que o governo revolucionário tivesse de assumir a responsabilidade pelo tesouro e pelos bancos, de que fosse perigoso e impossível tomar nas suas mãos as «prisões», etc. O Iskra apenas continua como antes a confundir-se, misturando a ditadura democrática e a socialista. A confusão é inevitável para cobrir a retirada.
Mas entre os confusionistas do novo Iskra, Martínov destaca-se como um confusionista de primeira classe, como um confusionista de talento, permita-se a expressão. Confundindo a questão nos seus esforços para a «aprofundar», «inventa» quase sempre novas formulações que revelam magnificamente toda a falsidade da posição por ele ocupada. Recordai-vos de como na época do «economismo» ele «aprofundava» Plekhánov e criou inspiradamente a fórmula «luta económica contra os patrões e o governo». Seria difícil encontrar em toda a literatura dos «economistas» uma expressão mais feliz de toda a falsidade desta tendência. Agora passa-se o mesmo. Martínov serve zelosamente o novo Iskra e quase sempre que toma a palavra fornece-nos novo e excelente material para a apreciação da falsa posição neo-iskrista. No n.° 102 diz que Lénine «substituiu de maneira imperceptível o conceito de revolução pelo de ditadura» (p. 3, col. 2).
A esta acusação se reduzem em essência todas as acusações dos neo-iskristas contra nós. E como estamos agradecidos a Martínov por esta acusação! Que inapreciável serviço nos presta na luta contra o neo-iskrismo formulando a sua acusação desta maneira! Decididamente, teremos de pedir à redacção do Iskra que lance mais frequentemente Martínov contra nós, encarregando-o do «aprofundamento» dos ataques ao Proletári e da sua formulação «realmente de princípios». Porque quanto mais Martínov se esforça por fundamentar os seus argumentos nos princípios, tanto pior o faz e tanto mais nitidamente demonstra as falhas do neo-iskrismo, com tanto mais êxito realiza, sobre si mesmo e sobre os seus amigos, a útil operação pedagógica de reductio ad absurdum (de redução ao absurdo dos princípios do novo Iskra).
O Vperiod e o Proletári «substituem» o conceito de revolução pelo de ditadura. O Iskra não quer tal «substituição». Precisamente isso, venerável camarada Martínov! Você disse sem querer uma grande verdade. Confirmou, por meio de uma nova formulação, a nossa afirmação de que o Iskra vai na cauda da revolução, se desvia para uma formulação osvobojdenista das suas tarefas, enquanto o Vperiod e o Proletári dão palavras de ordem que conduzem para a frente a revolução democrática.
Não compreende isto, camarada Martínov? Tendo em vista a importância da questão, tentaremos dar-lhe uma explicação pormenorizada.
O carácter burguês da revolução democrática exprime-se, entre outras coisas, no facto de que toda uma série de classes, grupos e camadas sociais, que se colocam completamente no terreno do reconhecimento da propriedade privada e da economia mercantil, e que são incapazes de sair destes limites, chegam, pela força das coisas, a reconhecer a inutilidade da autocracia e de todo o regime de servidão em geral, e aderem à reivindicação da liberdade. Nisso o carácter burguês desta liberdade, reivindicada pela «sociedade», defendida com uma torrente de palavras (e só de palavras!) pelos latifundiários e pelos capitalistas, aparece cada vez mais claro. Juntamente com isto, torna-se também cada vez mais evidente a diferença radical entre a luta dos operários e a da burguesia pela liberdade, entre o espírito democrático proletário e o liberal. A classe operária e os seus representantes conscientes vão para a frente e impulsionam para a frente esta luta, não só sem receio de a levar até ao fim, como também esforçando-se por ir muito para além dos últimos limites da revolução democrática. A burguesia é inconsequente e egoísta, só parcial e hipocritamente aceita as palavras de ordem de liberdade. Todas as tentativas para determinar com uma linha particular, com «pontos» elaborados particularmente (como os pontos da resolução de Starover ou da dos conferencistas), os limites para além dos quais começa esta hipocrisia dos amigos burgueses da liberdade, ou, se quisermos, esta traição à liberdade pelos seus amigos burgueses, estão infalivelmente condenadas ao fracasso, uma vez que a burguesia, colocada entre dois fogos (a autocracia e o proletariado), é capaz, por mil caminhos e meios, de mudar a sua posição e palavras de ordem, adaptando-se um palmo para a esquerda e um palmo para a direita, traficando e regateando constantemente. A tarefa da democracia proletária consiste não na invenção destes «pontos» mortos, mas numa crítica incansável da situação política em desenvolvimento, no desmascaramento das sempre novas e imprevisíveis inconsequências e traições da burguesia.
Recordai a história das intervenções políticas do Sr. Struve na literatura ilegal, a história da guerra da social-democracia contra ele, e vereis com toda a evidência como a social-democracia, campeã da democracia proletária, cumpria estas tarefas. O Sr. Struve começou com a palavra de ordem puramente chipovista de «direitos e um zemstvo com poder» (ver na Zariá o meu artigo Os Perseguidores do Zemstvo e os Aníbais do Liberalismo(32*)). A social-democracia desmascarava-o e empurrava-o para um programa nitidamente constitucionaíista. Quando estes «empurrões» surtiram efeito, graças à marcha particularmente rápida dos acontecimentos revolucionários, a luta orientou-se para a questão seguinte da democracia: não só uma constituição em geral, mas também obrigatoriamente o sufrágio universal, igual, directo e secreto. Quando «tomámos» ao «inimigo» também esta nova posição (a aprovação do sufrágio universal pela «União da Libertação») continuámos a fazer pressão, demonstrando a hipocrisia e a falsidade do sistema de duas câmaras, o carácter incompleto do reconhecimento do sufrágio universal pelos osvobojdenistas, assinalando no seu monarquismo o carácter traficante da sua democracia ou, por outras palavras, a traficância ruinosa dos interesses da grande revolução russa por estes osvobojdenistas heróis da bolsa de dinheiro.
Finalmente, a selvagem obstinação da autocracia, o gigantesco progresso da guerra civil, a situação sem saída a que os monárquicos tinham levado a Rússia, começaram a penetrar mesmo nas cabeças mais renitentes. A revolução convertia-se num facto. Para reconhecer a revolução já não era necessário ser revolucionário. O governo autocrático decompunha-se de facto e continua a decompor-se à vista de todos. Como assinalou com razão um liberal (o Sr. Gredéskul) na imprensa legal, criou-se de facto um estado de insubordinação contra este governo. Apesar da sua força aparente, a autocracia demonstrou ser impotente, os acontecimentos da revolução em desenvolvimento começaram simplesmente a afastar para o lado este organismo parasitário que se decompunha em vida. Obrigados a basear a sua actividade (ou, melhor dito, os seus negociozinhos políticos) em relações determinadas existentes de facto, os liberais burgueses começaram a verificar a necessidade de reconhecer a revolução. Fazem-no não porque sejam revolucionários, mas apesar de não serem revolucionários. Fazem-no por necessidade e contra a sua vontade, vendo com ódio os êxitos da revolução, acusando de revolucionarismo a autocracia, que não quer acordos, antes quer uma luta de vida ou de morte. Traficantes natos, odeiam a luta e a revolução, mas as circunstâncias obrigam-nos a colocar-se no terreno da revolução, uma vez que não há outro terreno debaixo dos pés.
Assistimos a um espectáculo altamente edificante e altamente cómico. As prostitutas do liberalismo burguês tentam cobrir-se com a toga do revolucionarismo. Os osvobojdenistas - risum teneatis, amici!(33*) — os osvobojdenistas começam a falar em nome da revolução! Os osvobojdenistas começam a assegurar que «não temem a revolução» (o Sr. Struve, no n.° 72 da Osvobojdénie)!!! Os osvobojdenistas manifestam a pretensão de «colocar-se à cabeça da revolução»!!!
Este é um fenómeno extraordinariamente significativo, que caracteriza não somente o progresso do liberalismo burguês como também, e ainda mais, o progresso dos êxitos reais do movimento revolucionário que obrigou ao seu reconhecimento. Até a burguesia começa a sentir que é mais vantajoso colocar-se no terreno da revolução, tão cambaleante está a autocracia. Mas, por outro lado, este fenómeno, que testemunha o ascenso de todo o movimento a um grau novo, superior, coloca perante nós tarefas também novas e também superiores. O reconhecimento da revolução pela burguesia não pode ser sincero, independentemente da boa fé pessoal de um ou outro ideólogo da burguesia. A burguesia não pode deixar de trazer, também nesta fase superior do movimento, o egoísmo e a inconsequência, a traficância e os pequenos subterfúgios reaccionários. Em nome do nosso programa e para o desenvolvimento do nosso programa, devemos agora formular de outra maneira as tarefas concretas imediatas da revolução. O que ontem era suficiente, hoje é insuficiente.
Ontem talvez fosse suficiente, como palavra de ordem democrática avançada, exigir o reconhecimento da revolução. Agora isto é pouco. A revolução obrigou mesmo o Sr. Struve a reconhecê-la. Agora da classe avançada exige-se que determine exactamente o próprio conteúdo das tarefas imediatas e inadiáveis desta revolução. Os senhores Struve, ao reconhecer a revolução, mostram uma e outra vez as suas orelhas de burro, entoando de novo a velha cantilena da possibilidade de um desenlace pacífico, de que Nicolau chame ao poder os senhores osvobojdenistas, etc, etc. Os senhores osvobojdenistas reconhecem a revolução com o objectivo de escamotear esta revolução, de a trair com menos riscos para si. Cabe-nos agora indicar ao proletariado e a todo o povo a insuficiência da palavra de ordem: revolução, mostrar a necessidade da clara e inequívoca, consequente e decidida definição do próprio conteúdo da revolução. E tal definição é representada pela palavra de ordem, única capaz de traduzir correctamente a «vitória decisiva» da revolução, pela palavra de ordem de ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato.
O abuso das palavras é um fenómeno muito corrente em política. Por exemplo, chamaram-se muitas vezes «socialistas» os partidários do liberalismo burguês («agora todos somos socialistas» — We ali are socialists now, disse Harcourt), os partidários de Bismarck e os amigos do papa Leão XIII. A palavra «revolução» também se presta perfeitamente a abuso, e em certa etapa do desenvolvimento do movimento tal abuso é inevitável. Quando o Sr. Struve se pôs a falar em nome da revolução, lembrámo-nos involuntariamente de Thiers. Poucos dias antes da revolução de Fevereiro este anão monstruoso, este intérprete ideal da venalidade política da burguesia pressentiu a aproximação da tempestade popular. E declarou da tribuna parlamentar que pertencia ao partido da revolução! (Ver A guerra Civil em França de Marx). O significado político da passagem da Osvobojdénie para o partido da revolução é absolutamente idêntica a esta «passagem» de Thiers. Quando os Thiers russos se põem a falar de que pertencem ao partido da revolução isso significa que a palavra de ordem de revolução se tornou insuficiente, que não diz nada, que não determina nenhuma tarefa, pois a revolução tornou-se um facto e passam em massa para o seu lado os elementos mais heterogéneos.
Com efeito, o que é a revolução do ponto de vista marxista? É a destruição violenta da superstrutura política antiquada, cuja contradição com as novas relações de produção conduziu, num momento determinado, ao seu colapso. A contradição da autocracia com toda a estrutura da Rússia capitalista, com todas as necessidades do seu desenvolvimento democrático burguês, conduziu agora a um colapso, tanto mais forte quanto mais tempo se fosse mantendo artificialmente esta contradição. A superstrutura rebenta por todas as costuras, cede à pressão, enfraquece. O povo precisa de criar ele próprio, por meio dos representantes das mais diversas classes e grupos, uma nova superstrutura para si. Num momento determinado do desenvolvimento torna-se evidente para todos a imprestabilidade da velha superstrutura. Todos reconhecem a revolução. A tarefa consiste agora em definir quais precisamente as classes e como precisamente devem construir a nova superstrutura. Sem tal definição a palavra de ordem de revolução é no momento actual oca e sem conteúdo, pois a fraqueza da autocracia torna «revolucionários» até os grão-duques e o Moskóvskie Védomosti! Sem tal definição nem sequer se pode falar das tarefas democráticas avançadas da classe avançada. E esta definição é precisamente a palavra de ordem de ditadura democrática do proletariado e do campesinato. Esta palavra de ordem define tanto as classes nas quais podem e devem apoiar-se os novos «construtores» da nova superstrutura, como o seu carácter (ditadura «democrática», diferentemente da socialista) e o método de construção (ditadura, isto é, esmagamento violento da resistência violenta, armamento das classes revolucionárias do povo). Quem não reconheça agora esta palavra de ordem de ditadura democrática revolucionária, a palavra de ordem de exército revolucionário, de governo revolucionário, de comités camponeses revolucionários, ou não compreende irremediavelmente as tarefas da revolução, não sabe definir as novas e superiores tarefas colocadas pelo momento actual, ou então engana o povo, trai a revolução, abusando da palavra de ordem de «revolução».
O primeiro caso é o do camarada Martínov e seus amigos. O segundo caso é o do Sr. Struve e todo o partido «democrata-constitucionalísta» dos zemstvos.
O camarada Martínov foi tão perspicaz e espirituoso que apresentou a acusação da «substituição» dos conceitos de revolução e de ditadura precisamente quando o desenvolvimento da revolução exigiu que se definissem as suas tarefas com a palavra de ordem de ditadura! De facto, o camarada Martínov teve outra vez a infelicidade de ficar na cauda, de parar no penúltimo degrau, de ver-se ao nível do osvobojdenismo, pois é precisamente à posição política osvobojdenista, isto é, aos interesses da burguesia liberal monárquica, que corresponde agora o reconhecimento da «revolução» (em palavras) e a falta de vontade de reconhecer a ditadura democrática do proletariado e do campesinato fisto é, a revolução de facto). A burguesia liberal pronuncia-se agora, pela boca do Sr. Struve, a favor da revolução. O proletariado consciente exige, pela boca dos socíais-democratas revolucionários, a ditadura do proletariado e do campesinato. E aqui intromete-se na discussão o sábio do novo Iskra, gritando: não ouseis «substituir» os conceitos de revolução e de ditadura! Pois bem, não será verdade que a falsidade da posição dos neo-iskristas os condena a arrastarem-se constantemente na cauda do osvobojdenismo? Demonstrámos que os osvobojdenistas sobem degrau a degrau (não sem a influência dos empurrões estimulantes da sociaí-democracia) no reconhecimento da democracia. A princípio, a questão da nossa discussão com eles era: táctica chipovista (direitos e um zemstvo com poder) ou constitucionalismo? Depois: eleições limitadas ou sufrágio universal? A seguir: reconhecimento da revolução ou acordo de traficantes com a autocracia? E finalmente agora: reconhecimento da revolução sem ditadura do proletariado e do campesinato, ou reconhecimento da reivindicação da ditadura destas classes na revolução democrática? É possível e provável que os senhores osvobojdenistas (os de agora ou os seus sucessores na ala esquerda da democracia burguesa, tanto faz) subam mais um degrau, isto é, reconheçam também com o tempo (talvez quando o camarada Martínov subir outro degrau) a palavra de ordem de ditadura. E isso será mesmo inevitável, se a revolução russa seguir com êxito para a frente e chegar até à vitória decisiva. Qual será, então, a posição da social-democracia? A vitória completa da revolução actual será o fim da revolução democrática e o começo da luta decisiva pela revolução-socialísta. A satisfação das reivindicações do campesinato actual, o completo esmagamento da reacção, a conquista da república democrática, marcarão o fim completo do revolucionarismo da burguesia e mesmo da pequena burguesia, marcarão o começo da verdadeira luta do proletariado pelo socialismo. Quanto mais completa for a revolução democrática tanto mais rápida, ampla, nítida e decididamente se desenvolverá esta nova luta. A palavra de ordem de ditadura «democrática» é que exprime o carácter histórico limitado da actual revolução e a necessidade de uma nova luta, na base da nova ordem de coisas, pela libertação total da classe operária de todo o jugo e de toda a exploração. Por outras palavras: quando a burguesia democrática ou a pequena burguesia subir mais um degrau, quando for um facto não só a revolução mas também a vitória completa da revolução, então «substituiremos» (talvez entre gritos de horror dos novos futuros Martínov) a palavra de ordem de ditadura democrática pela palavra de ordem de ditadura socialista do proletariado, isto é, de revolução socialista completa.
III. A Exposição Burguesa Vulgar da Ditadura e o Ponto de Vista de Marx Sober Ela
Mehring relata nas notas dedicadas à edição por ele publicada dos artigos de Marx na Nova Gazeta Renana em 1848 que a literatura burguesa faz a este jornal a censura, entre outras, de que a Nova Gazeta Renana exigiria «a instauração imediata da ditadura como único meio de realização da democracia» {Marx' Nachlass, tomo III, p. 53)[N262]. Do ponto de vista burguês vulgar, o conceito de ditadura e o conceito de democracia excluem-se um ao outro. Não compreendendo a teoria da luta de classes, acostumado a ver na arena política unicamente as pequenas disputas dos diversos círculos e tertúlias da burguesia, o burguês entende por ditadura a anulação de todas as liberdades e garantias da democracia, toda a arbitrariedade, todo o abuso do poder no interesse pessoal do ditador. No fundo, precisamente este ponto de vista burguês vulgar transparece também no nosso Martínov, que, como conclusão da sua «nova campanha» no novo Iskra, explica a paixão do Vperiod e do Proletári pela palavra de ordem de ditadura com o facto de Lénine «desejar apaixonadamente tentar a sorte» (Iskra, n.° 103, p. 3, col. 2). Esta encantadora explicação está inteiramente ao nível das acusações burguesas à Nova Gazeta Renana de pregar a ditadura. Também Marx, por conseguinte, foi acusado — só que não por «sociais-democratas», mas por liberais burgueses! — de «substituir os conceitos de revolução e ditadura». Para esclarecer Martínov sobre o conceito de ditadura de classe, diferentemente de ditadura de um indivíduo, e as tarefas da ditadura democrática, diferentemente das da ditadura socialista, não é inútil determo-nos no ponto de vista da Nova Gazeta Renana.
«Toda a estrutura estatal provisória — escrevia a Nova Gazeta Renana em 14 de Setembro de 1848 — depois de uma revolução exige uma ditadura, e uma ditadura enérgica. Nós criticámos desde o início Camphausen (presidente do ministério depois de 18 de Março de 1848) por não ter agido ditatorialmente, por não ter destruído e eliminado imediatamente os restos das velhas instituições. E enquanto o Sr. Camphausen se deixava embalar pelas ilusões constitucionais, o partido vencido (isto é, o partido da reacção) consolidava as suas posições na burocracia e no exército e começava até a atrever-se aqui e ali à luta aberta.»[N263]
Nestas palavras - diz justamente Mehring — está resumida em poucas teses a idéia exposta detalhadamente em longos artigos da Nova Gazeta Renana sobre o ministério Camphausen. Que nos dizem estas palavras de Marx? Que um governo provisório revolucionário deve actuar ditatorialmente (tese que o Iskra não pôde compreender de forma alguma, pelo seu medo à palavra de ordem de ditadura); que é tarefa desta ditadura a destruição dos restos das velhas instituições (precisamente o que é claramente indicado na resolução do III congresso do POSDR sobre o combate à contra-revolução, e que é omitido na resolução da conferência, como já mostrámos mais atrás). Finalmente, em terceiro lugar, destas palavras decorre que Marx fustigava os democratas burgueses pelas suas «ilusões constitucionais» numa época de revolução e de guerra civil aberta. O sentido destas palavras é particularmente claro no artigo da Nova Gazeta Renana de 6 de Junho de 1848. «A assembleia constituinte popular — escrevia Marx — deve ser, em primeiro lugar, uma assembleia activa, revolucionariamente activa. Mas a assembleia de Frankfurt entrega-se a exercícios escolares de parlamentarismo e deixa ao governo agir. Admitindo que este sábio concílio consiga, depois de madura reflexão, elaborar a melhor ordem do dia e a melhor constituição, para que servirá a melhor ordem do dia e a melhor constituição se, entretanto, os governos alemães colocarem a baioneta na ordem do dia?» [N264]
É este o sentido da palavra de ordem de ditadura. Daqui se pode deduzir qual seria a atitude de Marx em face de resoluções que consideram a «decisão de organizar a assembleia constituinte» como vitória decisiva, ou que convidam «a continuar a ser o partido da oposição revolucionária extrema»!
As grandes questões da vida dos povos decidem-se somente pela força. As próprias classes reaccionárias são geralmente as primeiras a recorrer à violência, à guerra civil, a «colocar a baioneta na ordem do dia», como o fez a autocracia russa e continua a fazê-lo, sistemática e constantemente, por toda a parte, desde 9 de Janeiro. E uma vez criada tal situação, uma vez que a baioneta encabeça realmente a ordem do dia política, uma vez que a insurreição se revelou imprescindível e inadiável, então as ilusões constitucionais e os exercícios escolares de parlamentarismo não servem senão para encobrir a traição da burguesia à revolução, para encobrir o facto de que a burguesia «se afasta» da revolução. A classe verdadeiramente revolucionária deve então lançar precisamente a palavra de ordem de ditadura.
Em relação às tarefas desta ditadura, Marx escrevia já na Nova Gazeta Renana: «a assembleia nacional devia ter actuado ditatorialmente contra as intentonas reaccionárias dos governos caducos e assim teria adquirido tal força na opinião popular que contra ela se teriam quebrado todas as baionetas... Mas esta assembleia aborrece o povo alemão em vez de o atrair para si ou de ser por ele atraída»[N265]. A assembleia nacional deveria, segundo a opinião de Marx, «eliminar da situação realmente existente na Alemanha tudo quanto se opusesse ao princípio da soberania do povo», depois, «consolidar o terreno revolucionário sobre o qual se encontrava e assegurar contra todos os ataques a soberania do povo conquistada pela revolução»[N266].
Assim, pois, as tarefas que Marx atribuía em 1848 ao governo revolucionário ou à ditadura reduziam-se em primeiro lugar, pelo seu conteúdo, à revolução democrática: defesa face à contra-revolução e eliminação, de facto, de tudo aquilo que estivesse em contradição com a soberania popular. E isto não é senão a ditadura revolucionária democrática.
Vejamos agora quais as classes que podiam e deviam, na opinião de Marx, realizar esta tarefa (aplicar na prática até ao fim o princípio da soberania do povo e repelir os ataques da contra-revolução). Marx fala do «povo». Mas nós sabemos que ele lutou sempre, sem piedade, contra as ilusões pequeno-burguesas da unidade do «povo», da ausência de luta de classes no seio do povo. Ao empregar a palavra «povo», Marx não ocultava com esta palavra a diferença de classes, antes reunia determinados elementos capazes de levar a revolução até ao fim.
Depois da vitória do proletariado berlinense a 18 de Março — escrevia a Nova Gazeta Renana — os resultados da revolução revelaram-se de duas espécies: «por um lado, o armamento do povo, o direito de associação, a soberania do povo, conquistada de facto; por outro lado, a manutenção da monarquia e do ministério CamphausenHansemann, isto é, um governo de representantes da grande burguesia. Desta forma, a revolução obteve duas espécies de resultados que deviam inevitavelmente conduzir a uma ruptura. O povo venceu; conquistou liberdades de carácter decididamente democrático, mas o domínio imediato não passou para as suas mãos mas para as mãos da grande burguesia. Numa palavra, a revolução não foi levada até ao fim. O povo permitiu aos representantes da grande burguesia que criassem um ministério, e estes representantes da grande burguesia demonstraram imediatamente as suas aspirações, propondo uma aliança à velha nobreza prussiana e à burocracia. Arnim, Kanitz e Schwerin entraram para o ministério.
«A grande burguesia, anti-revolucionaria desde o próprio inicio, concluiu uma aliança defensiva e ofensiva com a reacção, por medo ao povo, isto é, aos operários e à burguesia democrática». (Sublinhado por nós.)[N267]
Assim, não só «a decisão de organizar uma assembleia constituinte», mas a sua própria convocação é insuficiente para a vitória decisiva da revolução! Mesmo depois da vitória parcial na luta armada (vitória dos operários berlinenses sobre a tropa em 18 de Março de 1848), é possível uma revolução «inacabada», não levada até ao fim. De que depende, pois, levá-la até ao fim? Das mãos para as quais passe a dominação imediata: para as mãos dos Petrunkévitch e dos Róditchev, isto é, dos Camphausen e Hansemann, ou para as mãos do povo, isto é, dos operários e da burguesia democrática. No primeiro caso, a burguesia terá o poder e o proletariado a «liberdade de crítica», a liberdade de «continuar a ser o partido da oposição revolucionária extrema». A burguesia, imediatamente depois da vitória, concluirá uma aliança com a reacção (isto aconteceria inevitavelmente também na Rússia se os operários de Petersburgo, por exemplo, conseguissem uma vitória apenas parcial em combate de rua contra a tropa e deixassem aos senhores Petrunkévitch e C.a a formação do governo). No segundo caso, seria possível a ditadura revolucionária democrática, isto é, a vitória completa da revolução.
Resta determinar com maior exactidão o que precisamente entendia Marx por «burguesia democrática» (demokratische Bürgerschaft), à qual, juntamente com os operários, chamava povo em contraposição à grande burguesia.
A seguinte passagem de um artigo da Nova Gazeta Renana, publicado em 29 de Julho de 1848, dá-nos uma resposta clara a esta questão:
«... A revolução alemã de 1848 não é senão uma paródia da revolução francesa de 1789.
«Em 4 de Agosto de 1789, três semanas depois da tomada da Bastilha, o povo francês, num só dia, ajustou contas com todas as cargas feudais.
«Em 11 de julho de 1848, quatro meses depois das barricadas de Março, as cargas feudais ajustaram contas com o povo alemão. Teste Gierke cum Hansemanno(34*).
«A burguesia francesa de 1789 não abandonou nem um só minuto os seus aliados, os camponeses. Ela sabia que a sua dominação se baseava na liquidação do feudalismo no campo, na criação de uma classe de camponeses proprietários (grundbesitzenden) livres.
«A burguesia alemã de 1848 atraiçoa, sem nenhum escrúpulo, os camponeses, seus aliados mais naturais, que são carne da sua carne e sem os quais é impotente contra a nobreza.
«A manutenção dos direitos feudais, a sua sanção sob a aparência (ilusória) do resgate, eis o resultado da revolução alemã de 1848. A montanha pariu um rato.»[N268]
Esta é uma passagem muito instrutiva, que nos oferece quatro teses importantes:
A revolução alemã, não acabada, diferencia-se da francesa, acabada, pelo facto de que a burguesia atraiçoou não só a democracia em geral, mas, em particular, o campesinato.
A base da realização completa da revolução democrática é a criação de uma classe de camponeses livres.
A criação de tal classe significa a supressão das cargas feudais, a destruição do feudalismo, mas não ainda de modo algum a revolução socialista.
Os camponeses são «os aliados mais naturais» da burguesia, precisamente da burguesia democrática, sem os quais ela é «impotente» contra a reacção.
Todas estas teses, modificadas de acordo com as particularidades nacionais concretas, pondo regime de servidão em lugar de feudalismo, podem também ser aplicadas na sua totalidade à Rússia de 1905. Não há dúvida de que, aprendendo com os ensinamentos da experiência da Alemanha, explicada por Marx, não podemos chegar a uma palavra de ordem para a vitória decisiva da revolução que não seja: ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato. É indubitável que o proletariado e o campesinato são as principais partes constituintes do «povo» que Marx contrapunha, em 1848, à reacção que resistia e à burguesia que traía. É indubitável que também na Rússia a burguesia liberal e os senhores osvobojdenistas traem e trairão o campesinato, ou seja, limitar-se-ão a uma pseudo-reforma, colocar-se-ão ao lado dos latifundiários na luta decisiva entre estes e o campesinato. Só o proletariado é capaz de apoiar até ao fim os camponeses nesta luta. É indubitável, finalmente, que também na Rússia a vitória da luta camponesa, isto é, a passagem de todas as terras para o campesinato, significará uma revolução democrática completa, será a base social da revolução levada até ao fim, mas não será, de maneira nenhuma, uma revolução socialista nem a «socialização» de que falam os ideólogos da pequena burguesia, os socialistas-revolucionários. O êxito da insurreição camponesa, a vitória da revolução democrática, não fará mais do que limpar o caminho para uma luta decidida e verdadeira pelo socialismo na base da república democrática. O campesinato, como classe possuidora de terra, desempenhará nesta luta o mesmo papel de traição, de inconsequência, que agora desempenha a burguesia na luta pela democracia. Esquecer isto é esquecer o socialismo, enganar-se a si mesmo e aos outros em relação aos verdadeiros interesses e tarefas do proletariado.
Para não deixar uma lacuna na exposição dos pontos de vista de Marx em 1848, é necessário sublinhar uma diferença essencial entre a social-democracia alemã de então (ou partido comunista do proletariado, aplicando a linguagem de então) e a actual social-democracia russa. Concedamos a palavra a Mehring:
«A Nova Gazeta Renana apareceu na arena política como 'órgão da democracia'. Não é possível deixar de ver o fio condutor que atravessa todos os seus artigos. Mas, directamente, defendia mais os interesses da revolução burguesa contra o absolutismo e o feudalismo do que os interesses do proletariado contra os interesses da burguesia. Poucos materiais encontrareis nas suas colunas sobre o movimento operário específico durante a revolução, embora se não deva esquecer que, ao mesmo tempo, se publicava duas vezes por semana, sob a direcção de Moll e Schapper, um órgão particular da União Operária de Colónia[N269]. De qualquer forma, torna-se evidente, para o leitor contemporâneo, o pouco interesse que a Nova Gazeta Renana dedicava ao movimento operário alemão de então, apesar de a sua cabeça mais capaz, Stephan Born, ter sido discípulo de Marx e Engels em Paris e Bruxelas e, em 1848, correspondente em Berlim do seu jornal. Born conta nas suas Memórias que Marx e Engels nunca lhe disseram uma só palavra de desaprovação da sua agitação operária. Mas declarações posteriores de Engels tornam verosímil que estes estavam descontentes, peio menos, com os métodos dessa agitação. Este descontentamento era fundado na medida em que Born se via obrigado a fazer muitas concessões à consciência de classe do proletariado, completamente não desenvolvida ainda na maior parte da Alemanha, concessões que não resistiam à crítica do ponto de vista do Manifesto Comunista. O seu descontentamento não era fundado na medida em que, apesar de tudo, Born soube manter a agitação dirigida por ele num nível relativamente alto... Sem dúvida, Marx e Engels histórica e politicamente tinham razão quando viam o interesse fundamental da classe operária, em primeiro lugar, em impelir para a frente o mais possível a revolução burguesa... Não obstante, uma prova notável de como o instinto elementar do movimento operário sabe corrigir as concepções dos pensadores mais geniais é dada pelo facto de que, em Abril de 1849, eles se pronunciaram por uma organização operária específica e decidiram participar no congresso operário, que estava a ser organizado principalmente pelo proletariado do leste do Elba (Prússia Oriental).»
De modo que só em Abril de 1849, quase um ano depois do aparecimento do jornal revolucionário (a Nova Gazeta Renana começou a sair em 1 de Junho de 1848), Marx e Engels se pronunciaram a favor de uma organização particular dos operários! Até então dirigiam simplesmente um «órgão da democracia», não ligado por qualquer laço orgânico a um partido operário independente! Este facto, monstruoso e incrível do nosso ponto de vista actual, demonstra-nos claramente a diferença entre a social-democracia alemã de então e o actual partido operário social-democrata russo. Este facto mostra-nos quantas vezes menos se manifestavam os traços proletários do movimento, a corrente proletária nele, na revolução democrática alemã (devido ao atraso da Alemanha em 1848, tanto no sentido económico como no político — o seu fraccionamento estatal). Isto não se deve esquecer (como o esquece, por exemplo, Plekhánov)(35*) ao apreciar as numerosas declarações de Marx, desta época e da época um pouco posterior, sobre a necessidade da organização independente de um partido do proletariado. Apenas com a experiência da revolução democrática Marx, ao cabo de quase um ano, tirou esta conclusão prática: a tal ponto era então filistina, pequeno-burguesa, toda a atmosfera da Alemanha. Para nós esta conclusão é já uma velha e sólida aquisição da experiência de meio século da sociaí-democracia internacional, aquisição com a qual iniciámos a organização do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Entre nós, por exemplo, nem sequer se pode falar de os jornais revolucionários do proletariado estarem fora do partido social-democrata do proletariado ou aparecerem, nem que seja por um minuto, simplesmente como «órgãos da democracia».
Mas o contraste, que apenas começava a revelar-se entre Marx e Stephan Born, existe entre nós numa forma tanto mais desenvolvida quanto a corrente proletária é mais poderosa na torrente democrática da nossa revolução. Referindo-se ao provável descontentamento de Marx e Engels pela agitação de Stephan Born, Mehring exprime-se de forma demasiadamente suave e evasiva. Eis o que escrevia Engels sobre Born, em 1885 (prólogo de Enthüllungen über den Kommunistenprozess zu Köln, Zürich, 1885(36*)):
Os membros da Liga dos Comunistas estavam, em toda a parte, à cabeça do movimento democrático extremo, demonstrando com isso que a Liga era uma excelente escola de actividade revolucionária. «O compositor tipográfico Stephan Born, membro activo da Liga em Bruxelas e Paris, fundou em Berlim uma 'fraternidade operária' (Arbeiterverbrüderung), que adquiriu grande amplitude e se manteve até 1850. Born, jovem de talento, apressou-se demasiadamente, no entanto, a apresentar-se como político. 'Confraternizava' com a chusma mais díspar (Kreti und Plethi) só para reunir gente à sua volta. Não era de modo nenhum uma dessas pessoas capazes de fazer a unidade entre tendências contraditórias, de fazer a luz no caos. Nas publicações oficiais da sua fraternidade eram, por este motivo, constantemente embrulhados e confundidos os pontos de vista do Manifesto Comunista com reminiscências e aspirações corporativas, com fragmentos dos pontos de vista de Louis Blanc e de Proudhon, com a defesa do proteccionismo, etc; numa palavra, esta gente queria agradar a todos (allen alles sein). Ocupavam-se especialmente em organizar greves, sindicatos e cooperativas de produção, esquecendo que a tarefa consistia, acima de tudo, em conquistar primeiro, por meio davitória política, o terreno no qual se poderiam realizar sólida e firmemente tais coisas (sublinhado por nós). E eis que, quando as vitórias da reacção obrigaram os dirigentes desta fraternidade a sentirem a necessidade de participar directamente na luta revolucionária, então naturalmente a massa atrasada agrupada à sua volta abandonou-os. Born tomou parte na insurreição de Dresden, em Maio de 1849, e salvou-se por uma feliz casualidade. Mas a fraternidade operária manteve-se à margem do grande movimento político do proletariado como uma associação isolada que, na sua maior parte, só existia no papel, representando um papel tão secundário que a reacção só considerou necessário suprimi-la em 1850 e as suas filiais só foram dissolvidas muito tempo depois. Born (o verdadeiro nome de Born é Buttermilch)(37*) não conseguiu ser um político e acabou sendo um pequeno professor suíço que, em vez de traduzir Marx para o idioma corporativo, traduz o afável Renan para um alemão adocicado.»[N271]
Eis como apreciava Engels as duas tácticas da social-democraçia na revolução democrática!
Os nossos neo-iskristas tendem também para o «economismo» com tão desrazoável zelo que merecem os elogios da burguesia monárquica pela sua lucidez. Eles também reúnem à sua volta um público díspar, adulando os «economistas», seduzindo demagogicamente a massa atrasada com as palavras de ordem de iniciativa, «democracia», «autonomia», etc, etc. As suas associações operárias existem também frequentemente apenas nas páginas do novo Iskra khlestakovista[N272]. As suas palavras de ordem e resoluções revelam a mesma incompreensão das tarefas do «grande movimento político do proletariado».

Nenhum comentário: