29 (16) de Setembro de 1917
Assustam-nos Com a Guerra Civil
Assustada pelo facto de os mencheviques e os socialistas-revolucionários terem renunciado à coligação com os democratas-constitucionalistas, e pelo facto de a democracia poder, talvez, formar perfeitamente um governo sem eles e governar a Rússia contra eles, a burguesia não poupa esforços para assustar a democracia.
Assustai com todo o zelo possível — tal é a palavra de ordem de toda a imprensa burguesa. Assustai sem poupar esforços! Menti, caluniai — mas assustai!
O Birjovka assusta com as informações inventadas acerca das acções bolcheviques. Assustam com os boatos sobre a demissão de Alexéev e sobre a ameaça de uma ofensiva alemã até Petrogrado, como se os factos não tivessem provado que precisamente os generais kornilovistas (ao número dos quais pertence indubitavelmente também Alexéev) são capazes de abrir a frente aos alemães na Galicia, tanto diante de Riga como diante de Petrogrado, que são precisamente os generais kornilovistas que provocam o maior ódio do exército para com o quartel-general.
Procura dar-se a este método de intimidação da democracia a forma mais «sólida» e convincente por meio de referências ao perigo de «guerra civil». De todas as formas de intimidação, a intimidação com a guerra civil é talvez a mais difundida. Eis como o comité de Rostov do Don do partido da liberdade do povo formulou esta ideia corrente, e muito generalizada nos círculos filisteus, na resolução de 1 de Setembro (n.° 210 do Retch):
«O Comitê está convencido de que a guerra civil pode varrer todas as conquistas da revolução e absorver em torrentes de sangue a nossa jovem liberdade ainda fraca, e por isso considera necessário, no interesse da salvação das conquistas da revolução, um protesto enérgico contra o aprofundamento da revolução, ditado por utopias socialistas irrealizáveis ...»
Aqui está expressa, sob a forma mais clara, precisa, meditada e circunstaciada, a ideia fundamental, que se encontra inúmeras vezes nos editoriais do Retch, nos artigos de Plekhánov e Potréssov, nos editoriais dos jornais mencheviques, etc, etc. Não será por isso inútil determo-nos nesta ideia mais pormenorizadamente.
Procuraremos estudar a questão da guerra civil de forma mais concreta, baseando-nos, entre outras coisas, na experiência de meio ano já vivida pela nossa revolução.
Esta experiência, em plena conformidade com a experiência de todas as revoluções europeias a partir dos fins do século XVIII, mostra-nos que a guerra civil é a forma mais aguda da luta de classes, quando uma série de choques e combates económicos e políticos, repetindo-se, acumulando-se, alargando-se, agudizando-se, conduz à transformação destes choques em luta de armas na mão de uma classe contra outra classe. A guerra civil ocorre com maior frequência — pode dizer-se, mesmo quase exclusivamente — em países minimamente livres e avançados entre as classes cuja oposição é criada e aprofundada por todo o desenvolvimento económico do capitalismo, por toda a história da sociedade moderna em todo o mundo, a saber: entre a burguesia e o proletariado.
Assim também nós, no meio ano vivido da nossa revolução, vivemos em 20-21 de Abril e em 3-4 de Julho explosões espontâneas muito fortes, que se aproximavam de perto do início da guerra civil por parte do proletariado. E a insurreição kornilovista representou uma conspiração militar, apoiada pelos latifundiários e capitalistas com o partido dos democratas-constitucionalistas à frente, que conduziu já de facto ao início da guerra civil por parte da burguesia.
Tais são os factos. Tal é a história da nossa própria revolução. E é preciso sobretudo aprender dessa história, é preciso sobretudo reflectir no seu curso e no seu significado de classe.
Tentemos comparar os rudimentos da guerra civil proletária e os rudimentos da guerra civil burguesa na Rússia do ponto de vista: 1) da espontaneidade do movimento, 2) dos seus objectivos, 3) da consciência das massas que participam nele, 4) da força do movimento, 5) da sua tenacidade. Cremos que se todos os partidos que actualmente «atiram gratuitamente» de passagem as palavras «guerra civil» colocassem a questão desta maneira e tentassem estudar de facto os rudimentos da guerra civil, a consciência de toda a revolução russa ganharia muito, muitíssimo.
Comecemos pela espontaneidade do movimento. Sobre o 3-4 de Julho, temos os depoimentos de testemunhas tais como o Rabótchaia Gazeta menchevique e o Delo Naroda socialista-revolucionário, os quais reconheceram o facto do crescimento espontâneo do movimento. Citei estes depoimentos num artigo do Proletárskoe Delo, publicado em forma de folheto separado sob o título Resposta aos Caluniadores(1*). Mas os mencheviques e socialistas-revolucionários, por causas plenamente compreensíveis, defendendo-se a si próprios e a sua participação nas perseguições aos bolcheviques, continuam a negar oficialmente o carácter espontâneo da explosão de 3-4 de Julho.
Afastemos por enquanto o que é discutível. Deixemos o que é indiscutível. Ninguém contesta o carácter espontâneo do movimento de 20-21 de Abril. O partido dos bolcheviques aderiu a este movimento espontâneo com a palavra de ordem «todo o poder aos Sovietes», aderiu, de modo completamente independente dele, o falecido Linde, levando à rua 30 000 soldados armados, prontos a prender o governo. (Entre outras coisas, diga-se entre parêntesis, este facto da saída das tropas não foi investigado nem estudado. Mas quando se reflecte nele colocando o 20 de Abril na conexão histórica dos acontecimentos, isto é, considerando-o como um elo da cadeia que vai de 28 de Fevereiro a 29 de Agosto, torna-se claro que a culpa e o erro dos bolcheviques foi o insuficiente revolucionarismo da sua táctica e de modo algum o excessivo revolucionarismo, de que nos acusam os filisteus).
Assim, é indubitável o carácter espontâneo do movimento, que se aproximou do começo da guerra civil pelo proletariado. Na kornilovada não há nada sequer aproximadamente semelhante à espontaneidade: aí há apenas uma conspiração de generais que esperavam arrastar uma parte das tropas por meio do engano e da força das ordens.
Que o carácter espontâneo de um movimento é um indício da sua profundidade nas massas, da solidez das suas raízes, da impossibilidade da sua eliminação, é indubitável. A profundidade das raízes da revolução proletária e a falta de raízes da contra-revolução burguesa, eis o que mostram os factos do ponto de vista do carácter espontâneo do movimento.
Examinemos os objectivos do movimento. O 20-21 de Abril aproximou-se extremamente das palavras de ordem bolcheviques, e o 3-4 de Julho cresceu em ligação directa com elas, sob a sua influência e direcção. O partido dos bolcheviques falava de forma completamente aberta, determinada, clara, precisa, para todos o ouvirem, nos seus jornais e na sua agitação verbal, da ditadura do proletariado e do campesinato pobre, da paz e de a propor imediatamente, da confiscação das terras dos latifundiários, destes objectivos principais da guerra civil proletária.
Relativamente aos objectivos da kornilovada, todos nós sabemos, e ninguém da democracia o contesta, que esses objectivos consistiam na ditadura dos latifundiários e da burguesia, na dispersão dos Sovietes, na preparação da restauração da monarquia. O partido dos democratas-constitucionalistas, principal partido kornilovista (dever-se-ia, diga-se de passagem, passar agora a chamar-lhe partido kornilovista), dispondo de uma imprensa maior e de forças de agitação maiores do que os bolcheviques, nunca se decidiu nem se decide a falar abertamente ao povo nem na ditadura da burguesia, nem na dispersão dos Sovietes, nem nos objectivos kornilovistas em geral!
Do ponto de vista dos objectivos do movimento, os factos dizem que a guerra civil proletária pode apresentar-se com a exposição aberta ao povo dos seus objectivos finais, atraindo com isso as simpatias dos trabalhadores, mas a guerra civil burguesa só ocultando os seus objectivos pode tentar conduzir uma parte das massas; daí a enorme diferença quanto à questão da consciência das massas.
Existem dados objectivos sobre esta questão, segundo parece, exclusivamente em relação ao número de filiados nos partidos e às eleições. Parece não haver outros factos que permitam julgar com precisão da consciência das massas. Que o movimento proletário revolucionário é encabeçado pelo partido dos bolcheviques, e o movimento contra-revolucionário burguês pelo partido dos democratas-constitucionalistas, isto é claro e dificilmente pode ser contestado após a experiência de meio ano de revolução. Pode-se invocar três comparações de carácter factual quanto à questão que estamos a examinar. A comparação das eleições de Maio para as Dumas de bairro em Petrogrado com as de Agosto para a Duma central dá a diminuição dos votos democratas-constitucionalistas e um enorme aumento dos votos bolcheviques. A imprensa democrata-constitucionalista reconhece que onde há aglomerações de massas de operários ou de soldados, aí observa-se também, regra geral, a força do bolchevismo.
Depois, o carácter consciente da participação das massas no partido, dada a inexistência de quaisquer estatísticas sobre a flutuação do número dos membros do partido, sobre a assistência às reuniões, etc, só pode ser comprovado nos factos com os dados publicados relativamente às recolhas de fundos para o partido. Estes dados mostram um heroísmo enorme e de massas dos operários bolcheviques na recolha de fundos para o Pravda, para os jornais fechados, etc. Os relatórios sobre as recolhas foram sempre publicados. Nos democratas-constitucionalistas não vemos nada de semelhante: o seu trabalho de partido é «alimentado», é claro, com as contribuições dos ricos. Nem vestígios duma ajuda activa das massas.
Finalmente, a comparação dos movimentos de 20-21 de Abril e de 3-4 de Julho, por um lado, e da kornilovada, por outro, mostra-nos que os bolcheviques apontam directamente às massas o seu inimigo na guerra civil, a saber: a burguesia, os latifundiários e os capitalistas. A kornilovada já mostrou o engano directo das tropas que seguiam Kornílov, engano que foi posto a descoberto logo pelo primeiro encontro da «divisão selvagem» e dos comboios kornilovistas com os petrogradenses.
Prossigamos. Quais são os dados sobre a força do proletariado e da burguesia na guerra civil? A força dos bolcheviques está apenas no número dos proletários, na sua consciência, nas simpatias das «bases» (isto é, os operários e os camponeses pobres) socialistas-revolucionárias e mencheviques pelas palavras de ordem bolcheviques. É um facto que foram precisamente estas palavras de ordem que levaram efectivamente atrás e si a maioria das massas revolucionárias activas em Petrogrado em 20-21 de Abril e em 18 de Junho, e em 3-4 de Julho.
Com esta comparação entre os dados sobre as eleições «parlamentares» e os dados sobre os referidos movimentos de massas confirma-se inteiramente, em relação à Rússia, uma observação feita muitas vezes no Ocidente, a saber: a força do proletariado revolucionário, do ponto de vista da influência sobre as massas e da sua integração na luta, é incomparavelmente maior na luta não parlamentar do que na luta parlamentar. Esta é uma observação muito importante sobre a questão da guerra civil.
É compreensível porque é que todas as condições e todo o ambiente da luta parlamentar e das eleições reduz a força das classes oprimidas em comparação com a força que elas podem desenvolver de facto numa guerra civil.
A força dos democratas-constitucionalistas e da kornilovada está na força da riqueza. Que o capital anglo-francês e o imperialismo estão a favor dos democratas-constitucionalistas e a favor da kornilovada, isto foi demonstrado por uma longa série de intervenções políticas e pela imprensa. É geralmente sabido que toda a «direita» da Conferência de Moscovo de 12 de Agosto estava furiosamente a favor de Kornílov e Kalédine. É geralmente sabido como a imprensa burguesa francesa e inglesa «ajudava» Kornílov. Há indícios de que ele recebia uma ajuda por parte dos bancos.
Toda a força da riqueza se colocou a favor de Kornílov, mas que fracasso tão triste e rápido! As forças sociais que, além dos ricos, podem ver-se com os kornilovistas são apenas duas: a «divisão selvagem» e os cossacos. No primeiro caso, é apenas a força do obscurantismo e do engano. Esta força é tanto mais temível quanto mais a imprensa se mantiver nas mãos da burguesia. O proletariado, triunfando na guerra civil, minaria esto fonte de «força» imediata e radicalmente.
No que se refere aos cossacos, temos aqui uma camada da população formada por proprietários rurais ricos, pequenos e médios (a propriedade rural média é de cerca de 50 deciatinas) duma das zonas periféricas da Rússia que mais conservaram traços medievais de vida, de economia, de costumes. Aqui pode ver-se uma base socioeconómica para uma Vendeia[N134] russa. Mas o que mostraram os factos relativos ao movimento kornilovista-kaledinista? Mesmo Kalédine, o «chefe amado» apoiado pelos Gutchkov, Miliukov, Riabuchínski e C.a, não levantou, apesar de tudo, um movimento de massas!! Kalédine ia para a guerra civil de modo infinitamente mais «directo» e rectilíneo do que os bolcheviques. Kalédine «ia levantar o Don» abertamente, e apesar de tudo Kalédine não levantou nenhum movimento de massas na «sua» região, numa região de cossacos isolada da democracia de toda a Rússia! Pelo contrário, observamos, por parte do proletariado, explosões espontâneas do movimento no centro da influência e da força da democracia antibolchevique de toda a Rússia.
Não há dados objectivos sobre a atitude das diferentes camadas e dos diferentes grupos económicos dos cossacos para com a democracia e para com a kornilovada. Há apenas indícios de que a maioria dos cossacos pobres e médios se inclinam mais para a democracia, e só a oficialidade e as camadas superiores dos cassacos abastados são plenamente kornilovistas.
Seja como for, está historicamente provada, depois da experiência de 26-31 de Agosto, uma extrema fraqueza do movimento cossaco de massas a favor da contra-revolução burguesa.
Resta a última questão: a da tenacidade do movimento. Relativamente ao movimento proletário-revolucionário, bolchevique, já temos o facto provado de que a luta contra o bolchevismo, em meio ano de república na Rússia, foi conduzida como uma luta ideológica, com um predomínio gigantesco dos órgãos de imprensa e das forças de agitação por parte dos opositores do bolchevismo (e com a inclusão muito «arriscada» na luta «ideológica» da campanha de calúnias), e também pela via das acções repressivas: centenas dê pessoas foram presas, foi destruída a tipografia principal, foram encerrados o jornal principal e uma série de jornais. O resultado é mostrado pelos factos: um enorme reforço do bolchevismo nas eleições de Agosto em Petrogrado, depois um reforço das correntes internacionalistas e «de esquerda» que se aproximam do bolchevismo tanto no partido socialista-revolucionário como no menchevique. Quer dizer, a tenacidade do movimento proletário-revolucionário na Rússia republicana é muito grande. Os factos dizem que os esforços conjuntos dos democratas-constitucionalistas, dos socialistas-revolucionários e mencheviques não conseguiram de modo algum enfraquecer este movimento. Pelo contrário, foi precisamente a coligação dos kornilovistas com a «democracia» que reforçou o bolchevismo. Não pode haver outros meios de luta contra a corrente proletária-revolucionária senão uma influência ideológica e acções repressivas.
Por enquanto, não há dados sobre a tenacidade do movimento democrata-constitucionalista-kornilovista. Os democratas-constitucionalistas nunca sofreram perseguições. Até libertaram Gutchkov, até não prenderam Maklakov e Miliukov. Até não fecharam o Retch. Poupam os democratas-constitucionalistas. O governo de Kérenski namora os democratas-constitucionalistas e kornilovistas. E se se colocar a questão da seguinte maneira: suponhamos que os Riabuchínski anglo-franceses e russos ofereçam mais e mais milhões aos democratas-constitucionalistas, ao Edinstvo, ao Den, etc, para uma nova campanha eleitoral em Petrogrado; será crível que o número dos seus votos cresça agora, após a kornilovada? Dificilmente se poderá dar a esta pergunta, a julgar pelas reuniões, etc, uma resposta que não seja negativa . . .
* * *
Ao resumir as conclusões da nossa comparação dos dados da história da revolução russa, obtemos a conclusão de que o início da guerra civil por parte do proletariado revelou a força, a consciência, o enraizamento, o crescimento e a tenacidade do movimento. O início da guerra civil por parte da burguesia não revelou nenhuma força, nenhuma consciência das massas, nenhum enraizamento, nenhumas possibilidades de vitória.
A aliança dos democratas-constitucionalistas com os socialistas-revolucionários e mencheviques contra os bolcheviques, isto é, contra o proletariado revolucionário, foi experimentada na prática no decurso de vários meses, e esta aliança dos kornilovistas, temporariamente ocultos, com a «democracia», levou de facto não ao enfraquecimento mas ao reforço dos bolcheviques, à falência da «coligação», ao reforço da oposição «de esquerda» também entre os mencheviques.
A aliança dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários e mencheviques contra os democratas-constitucionalistas, contra a burguesia, ainda não foi experimentada. Ou, para ser mais preciso, tal aliança foi experimentada apenas numa frente, apenas durante cinco dias, de 26 a 31 de Agosto, durante a kornilovada, e essa aliança permitiu nessa altura alcançar a vitória mais completa, com uma facilidade ainda nunca vista em nenhuma revolução, sobre a contra-revolução, ela permitiu uma vitória tão esmagadora sobre a contra-revolução burguesa, latifundiária e capitalista, imperialista-aliada e democrata-constitucionalista, que deste lado a guerra civil foi pulverizada, se transformou em nada desde o próprio começo, se desagregou antes de qualquer «combate».
E perante este facto histórico toda a imprensa burguesa, com todos os seus porta-vozes (os Plekhánov, Potréssov, Brechko-Brechkóvskaia, etc), grita com todas as forças que é precisamente a aliançados bolcheviques com os mencheviques e socialistas-revolucionários que «ameaça» com os horrores da guerra civil!.
Isto seria ridículo se não fosse triste. É triste que em geral possa encontrar ouvintes semelhante absurdo claro, evidente, clamoroso, semelhante troça dos factos, de toda a história da nossa revolução . . . Isto prova que está ainda enormemente difundida a mentira burguesa e interesseira (e a difusão é inevitável enquanto a imprensa estiver monopolizada pela burguesia), mentira que submerge e abafa as lições mais indubitáveis, palpáveis e indiscutíveis da revolução.
Se existe uma lição da revolução absolutamente indiscutível, absolutamente provada pelos factos, é que unicamente uma aliança dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários e mencheviques, unicamente uma passagem imediata de todo o poder aos Sovietes tornaria impossível uma guerra civil na Rússia. Pois contra tal aliança, contra os Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses é inconcebível qualquer guerra civil iniciada pela burguesia, tal «guerra» não chegaria sequer a um só combate, a burguesia não encontrará pela segunda vez, depois da kornilovada, nem sequer a «divisão selvagem», nem sequer o número anterior de comboios de cossacos para o movimento contra o Governo Soviético!
O desenvolvimento pacífico de qualquer revolução em geral é uma coisa extraordinariamente rara e difícil, pois a revolução é a maior agudização das contradições de classe mais agudas, mas num país camponês, quando a aliança do proletariado e do campesinato pode dar a paz às massas esgotadas pela guerra mais injusta e mais criminosa, e toda a terra ao campesinato — em tal país, em tal momento histórico excepcional, com a passagem de todo o poder para os Sovietes, um desenvolvimento pacífico da revolução é possível e provável. A luta de partidos pelo poder dentro dos Sovietes pode decorrer pacificamente se os Sovietes forem plenamente democráticos, se eles renunciarem aos «pequenos furtos», ao «roubo» dos princípios democráticos, tais como a concessão aos soldados de um representante por cada 500 eleitores, e aos operários de um por cada 1000. Numa república democrática tais pequenos furtos estão condenados ao desaparecimento.
Contra os Sovietes que entregam toda a terra sem indemnização aos camponeses e que propõem uma paz justa a todos os povos, contra tais Sovietes não é de modo algum de temer, é completamente impotente qualquer aliança da burguesia anglo-francesa e russa, dos Kornílov, dos Buchanan e dos Riabuchínski, dos Miliukov com os Plekhánov e os Potréssov. A resistência da burguesia contra a entrega da terra aos camponeses sem indemnização, contra semelhantes transformações em outros domínios da vida, contra a paz justa e o rompimento com o imperialismo, tal resistência, naturalmente, é inevitável. Mas para a resistência chegar à guerra civil, para isto são necessárias massas, por pouco numerosas que sejam, capazes de combater e vencer os Sovietes. Mas a burguesia não tem tais massas e não tem onde as ir buscar. Quanto mais rápida e decididamente os Sovietes tomarem todo o poder tanto mais depressa se cindirão tanto as «divisões selvagens» como os cossacos, se cindirão na minoria mais insignificante de kornilovistas conscientes e na enorme maioria dos partidários da aliança democrática e socialista (pois tratar-se-á então precisamente do socialismo) dos operários e camponeses.
Com a passagem do poder para os Sovietes, a resistência da burguesia levará a que cada capitalista será «seguido», vigiado, controlado e registado por dezenas e centenas de operários e camponeses, cujo interesse exigirá que seja combatido o engano do povo pelos capitalistas. As formas e métodos deste registo e controlo foram elaborados e simplificados precisamente pelo capitalismo, precisamente por criações do capitalismo tais como os bancos, as grandes fábricas, os consórcios, os caminhos-de-ferro, os correios, as sociedades de consumidores e os sindicatos. Bastará que os Sovietes castiguem os capitalistas que se furtam ao controlo mais pormenorizado ou enganam o povo com a confiscação de todos os seus bens e prendendo-os por um período breve para quebrar, sem derramamento de sangue, toda a resistência da burguesia. Pois é precisamente através dos bancos, uma vez nacionalizados, é precisamente através dos sindicatos de empregados, através dos correios, através das sociedades de consumidores, através dos sindicatos, que o controlo e o registo se tornarão universais, omnipotentes, omnipresentes e invencíveis.
E os Sovietes russos, a aliança dos operários e camponeses pobres russos, não estão sós nos seus passos para o socialismo. Se estivéssemos sós, não teríamos forças para realizar esta tarefa até ao fim e pacificamente, pois esta tarefa é, no fundo, internacional. Mas nós temos uma reserva grandiosa, os exércitos de operários mais avançados noutros países, nos quais o rompimento da Rússia com o imperialismo e com a guerra imperialista acelerará inevitavelmente a revolução operária, socialista, que neles amadurece.
* * *
Falam de «torrentes de sangue» na guerra civil. Di-lo a resolução dos democratas-constitucionalistas-kornilovistas, citada atrás. Esta frase é repetida de mil maneiras por todos os burgueses e por todos os oportunistas. Dela riem e rirão, não podem deixar de rir depois da kornilovada, todos os operários conscientes.
Mas a questão das «torrentes de sangue» no tempo de guerra que vivemos pode e deve ser colocada na base de um cômputo aproximado das forças, de um cálculo das consequências e resultados, tomada seriamente e não como uma oca frase corrente, não apenas como uma hipocrisia dos democratas-constitucionalistas, que tudo fizeram pela sua parte para Kornílov conseguir inundar a Rússia com «torrentes de sangue», a fim de restaurar a ditadura da burguesia, o poder dos latifundiários e a monarquia.
«Torrentes de sangue», dizem-nos. Consideremos também este lado da questão.
Suponhamos que continuam as vacilações dos mencheviques e socialistas-revolucionários, eles não entregam o poder aos Sovietes, não derrubam Kérenski, restabelecem o velho e apodrecido compromisso com a burguesia sob uma forma um pouco diferente (em lugar dos democratas-constitucionalistas, por exemplo, kornilovistas «sem partido»), não substituem o aparelho do poder de Estado pelo aparelho soviético, não propõem a paz, não rompem com o imperialismo, não confiscam as terras dos latifundiários. Suponhamos que este é o desenlace das vacilações actuais dos socialistas-revolucionários e mencheviques, que este é o desenlace do «12 de Setembro».
A experiência da nossa própria revolução diz de forma absolutamente clara que a consequência disto seria um enfraquecimento ainda maior dos socialistas-revolucionários e mencheviques, uma separação ainda maior deles com as massas, um aumento incrível da indignação e da exasperação nas massas, um aumento enorme das simpatias para com o proletariado revolucionário, para com os bolcheviques.
O proletariado da capital estará então ainda mais perto do que agora da comuna, da insurreição operária, da tomada do poder nas suas mãos, da guerra civil na sua forma mais elevada e decidida: depois da experiência de 20-21 de Abril e de 3-4 de Julho, tal resultado deve ser reconhecido como historicamente inevitável.
«Torrentes de sangue», gritam os democratas-constitucionalistas. Mas semelhantes torrentes de sangue dariam a vitória ao proletariado e ao campesinato pobre, e esta vitória, com noventa e nove por cento de probabilidades, daria a paz em lugar da guerra imperialista, isto é, pouparia a vida a centenas de milhares de pessoas que hoje derramam o seu sangue por causa da partilha dos lucros e das conquistas (anexações) dos capitalistas. Se o 20-21 de Abril tivesse terminado com a passagem de todo o poder para os Sovietes e desse a vitória dentro deles aos bolcheviques em aliança com o campesinato pobre, então, mesmo que isto tivesse custado «torrentes de sangue», isto salvaria a vida a meio milhão de soldados russos, que morreram decerto nos combates de 18 de Junho.
Assim calcula e assim calculará cada operário e soldado consciente russo, se ponderar e tomar em consideração a questão da guerra civil que se coloca actualmente por toda a parte, e, naturalmente, tal operário e soldado, que viveu e reflectiu alguma coisa, não se assustará com os clamores acerca das «torrentes de sangue» lançadas pelos homens, partidos e grupos que desejam sacrificar as vidas de novos milhões de soldados russos por Constantinopla, por Lvov, por Varsóvia, pela «vitória sobre a Alemanha».
Nenhumas «torrentes de sangue» numa guerra civil interna se comparam sequer aproximadamente com aqueles mares de sangue que os imperialistas russos derramaram depois de 19 de Junho (a despeito das probabilidades extraordinariamente elevadas de o evitar por meio da entrega do poder aos Sovietes).
Em tempo de guerra, senhores Miliukov, Potréssov, Plekhánov, argumentai mais cuidadosamente contra as «torrentes de sangue» na guerra civil, pois os soldados conhecem e viram mares de sangue.
A situação internacional da revolução russa agora, em 1917, no quarto ano de uma guerra criminosíssima, inauditamente pesada, que esgotou os povos, é tal que a proposta duma paz justa pelo proletariado russo vencedor na guerra civil significaria noventa e nove por cento de probabilidades de conseguir um armistício e a paz sem derramar outros mares de sangue.
Porque a união dos imperialismos anglo-francês e alemão, inimigos entre si, contra a república proletária socialista da Rússia é na prática impossível, e a união dos imperialismos inglês, japonês e americano contra nós é extremamente difícil de realizar e não nos assusta de modo nenhum em virtude da própria situação geográfica da Rússia. E, entretanto, a existência de massas proletárias revolucionárias e socialistas dentro de todos os Estados europeus é um facto, o amadurecimento e a inevitabilidade da revolução socialista mundial não oferece dúvidas, e não se pode ajudar seriamente esta revolução, naturalmente, com delegações e com o jogo às conferências de Estocolmo com os Plekhánov ou os Tseretéli estrangeiros, mas apenas com o movimento para a frente da revolução russa.
Os burgueses gritam sobre uma derrota inevitável da comuna na Rússia, isto é, a derrota do proletariado se ele conquistasse o poder.
São gritos mentirosos, gritos interesseiros e de classe.
Ao conquistar o poder, o proletariado da Rússia tem todas as probabilidades de o manter e de dirigir a Rússia até à revolução vitoriosa no Ocidente.
Porque, em primeiro lugar, aprendemos muito desde o tempo da Comuna e não repetiríamos os seus erros fatais, não deixaríamos ficar a banca nas mãos da burguesia, não nos limitaríamos a defender-nos contra os nossos versalheses (isto é, os kornilovistas), mas passaríamos à ofensiva contra eles e esmagá-los-íamos.
Em segundo lugar, o proletariado vitorioso dará a paz à Rússia. E nenhuma força derrubará o governo da paz, o governo de uma paz justa, sincera, honrada, depois de todos os horrores de mais de três anos de massacre dos povos.
Em terceiro lugar, o proletariado vitorioso dará a terra, imediatamente e sem indemnização, ao campesinato. E a maioria gigantesca do campesinato, esgotado e exasperado pelo «jogo com os latifundiários» que o nosso governo pratica, sobretudo o governo de «coligação», sobretudo o governo de Kérenski, apoiará por todos os meios, inteiramente e sem reservas o proletariado vitorioso.
Falais todos em «esforços heróicos» do povo, senhores mencheviques e socialistas-revolucionários. Há apenas uns dias encontrei essa frase uma e outra vez no editorial do vosso Izvéstia TsIK. Em vós isto é apenas uma frase. Mas os operários e camponeses que a lêem pensam nela, e cada reflexão, apoiada pela «experiência» da kornilovada, pela experiência do ministério de Pechekhónov, pelas «experiências» do ministério de Tchernov e assim por diante, cada reflexão conduz inevitavelmente a esta conclusão: mas este «esforço heróico» não é senão a confiança do campesinato pobre nos operários da cidade como seus mais fiéis aliados e chefes. O esforço heróico não é senão a vitória do proletariado russo sobre a burguesia na guerra civil, pois só tal vitória salvará de vacilações dolorosas, só ela dará uma saída, dará a terra, dará a paz.
Se se pode realizar a aliança dos operários da cidade com o campesinato pobre através da passagem imediata do poder aos Sovietes, tanto melhor. Os bolcheviques farão tudo para assegurar esta via pacífica do desenvolvimento da revolução. Sem isto, nem a Assembleia Constituinte, por si só, será a salvação, porque também nela os socialistas-revolucionários poderão continuar o «jogo» aos acordos com os democratas-constitucionalistas, com Brechko-Brechkóvskaia e Kérenski (em que são eles melhores do que os democratas-constitucionalistas?), etc, etc.
Se nem sequer a experiência da kornilovada ensinou a «democracia» e se ela continuar a sua política funesta de vacilações e de conciliação, então diremos: nada destrói tanto a revolução proletária como estas vacilações. Não intimideis, pois, senhores, com a guerra civil: ela é inevitável se não quiserdes ajustar contas, agora mesmo e até ao fim, com a kornilovada e com a «coligação» — então esta guerra dará a vitória sobre os exploradores, dará a terra aos camponeses, dará a paz aos povos, abrirá um caminho seguro para a revolução vitoriosa do proletariado socialista mundial.
Assustada pelo facto de os mencheviques e os socialistas-revolucionários terem renunciado à coligação com os democratas-constitucionalistas, e pelo facto de a democracia poder, talvez, formar perfeitamente um governo sem eles e governar a Rússia contra eles, a burguesia não poupa esforços para assustar a democracia.
Assustai com todo o zelo possível — tal é a palavra de ordem de toda a imprensa burguesa. Assustai sem poupar esforços! Menti, caluniai — mas assustai!
O Birjovka assusta com as informações inventadas acerca das acções bolcheviques. Assustam com os boatos sobre a demissão de Alexéev e sobre a ameaça de uma ofensiva alemã até Petrogrado, como se os factos não tivessem provado que precisamente os generais kornilovistas (ao número dos quais pertence indubitavelmente também Alexéev) são capazes de abrir a frente aos alemães na Galicia, tanto diante de Riga como diante de Petrogrado, que são precisamente os generais kornilovistas que provocam o maior ódio do exército para com o quartel-general.
Procura dar-se a este método de intimidação da democracia a forma mais «sólida» e convincente por meio de referências ao perigo de «guerra civil». De todas as formas de intimidação, a intimidação com a guerra civil é talvez a mais difundida. Eis como o comité de Rostov do Don do partido da liberdade do povo formulou esta ideia corrente, e muito generalizada nos círculos filisteus, na resolução de 1 de Setembro (n.° 210 do Retch):
«O Comitê está convencido de que a guerra civil pode varrer todas as conquistas da revolução e absorver em torrentes de sangue a nossa jovem liberdade ainda fraca, e por isso considera necessário, no interesse da salvação das conquistas da revolução, um protesto enérgico contra o aprofundamento da revolução, ditado por utopias socialistas irrealizáveis ...»
Aqui está expressa, sob a forma mais clara, precisa, meditada e circunstaciada, a ideia fundamental, que se encontra inúmeras vezes nos editoriais do Retch, nos artigos de Plekhánov e Potréssov, nos editoriais dos jornais mencheviques, etc, etc. Não será por isso inútil determo-nos nesta ideia mais pormenorizadamente.
Procuraremos estudar a questão da guerra civil de forma mais concreta, baseando-nos, entre outras coisas, na experiência de meio ano já vivida pela nossa revolução.
Esta experiência, em plena conformidade com a experiência de todas as revoluções europeias a partir dos fins do século XVIII, mostra-nos que a guerra civil é a forma mais aguda da luta de classes, quando uma série de choques e combates económicos e políticos, repetindo-se, acumulando-se, alargando-se, agudizando-se, conduz à transformação destes choques em luta de armas na mão de uma classe contra outra classe. A guerra civil ocorre com maior frequência — pode dizer-se, mesmo quase exclusivamente — em países minimamente livres e avançados entre as classes cuja oposição é criada e aprofundada por todo o desenvolvimento económico do capitalismo, por toda a história da sociedade moderna em todo o mundo, a saber: entre a burguesia e o proletariado.
Assim também nós, no meio ano vivido da nossa revolução, vivemos em 20-21 de Abril e em 3-4 de Julho explosões espontâneas muito fortes, que se aproximavam de perto do início da guerra civil por parte do proletariado. E a insurreição kornilovista representou uma conspiração militar, apoiada pelos latifundiários e capitalistas com o partido dos democratas-constitucionalistas à frente, que conduziu já de facto ao início da guerra civil por parte da burguesia.
Tais são os factos. Tal é a história da nossa própria revolução. E é preciso sobretudo aprender dessa história, é preciso sobretudo reflectir no seu curso e no seu significado de classe.
Tentemos comparar os rudimentos da guerra civil proletária e os rudimentos da guerra civil burguesa na Rússia do ponto de vista: 1) da espontaneidade do movimento, 2) dos seus objectivos, 3) da consciência das massas que participam nele, 4) da força do movimento, 5) da sua tenacidade. Cremos que se todos os partidos que actualmente «atiram gratuitamente» de passagem as palavras «guerra civil» colocassem a questão desta maneira e tentassem estudar de facto os rudimentos da guerra civil, a consciência de toda a revolução russa ganharia muito, muitíssimo.
Comecemos pela espontaneidade do movimento. Sobre o 3-4 de Julho, temos os depoimentos de testemunhas tais como o Rabótchaia Gazeta menchevique e o Delo Naroda socialista-revolucionário, os quais reconheceram o facto do crescimento espontâneo do movimento. Citei estes depoimentos num artigo do Proletárskoe Delo, publicado em forma de folheto separado sob o título Resposta aos Caluniadores(1*). Mas os mencheviques e socialistas-revolucionários, por causas plenamente compreensíveis, defendendo-se a si próprios e a sua participação nas perseguições aos bolcheviques, continuam a negar oficialmente o carácter espontâneo da explosão de 3-4 de Julho.
Afastemos por enquanto o que é discutível. Deixemos o que é indiscutível. Ninguém contesta o carácter espontâneo do movimento de 20-21 de Abril. O partido dos bolcheviques aderiu a este movimento espontâneo com a palavra de ordem «todo o poder aos Sovietes», aderiu, de modo completamente independente dele, o falecido Linde, levando à rua 30 000 soldados armados, prontos a prender o governo. (Entre outras coisas, diga-se entre parêntesis, este facto da saída das tropas não foi investigado nem estudado. Mas quando se reflecte nele colocando o 20 de Abril na conexão histórica dos acontecimentos, isto é, considerando-o como um elo da cadeia que vai de 28 de Fevereiro a 29 de Agosto, torna-se claro que a culpa e o erro dos bolcheviques foi o insuficiente revolucionarismo da sua táctica e de modo algum o excessivo revolucionarismo, de que nos acusam os filisteus).
Assim, é indubitável o carácter espontâneo do movimento, que se aproximou do começo da guerra civil pelo proletariado. Na kornilovada não há nada sequer aproximadamente semelhante à espontaneidade: aí há apenas uma conspiração de generais que esperavam arrastar uma parte das tropas por meio do engano e da força das ordens.
Que o carácter espontâneo de um movimento é um indício da sua profundidade nas massas, da solidez das suas raízes, da impossibilidade da sua eliminação, é indubitável. A profundidade das raízes da revolução proletária e a falta de raízes da contra-revolução burguesa, eis o que mostram os factos do ponto de vista do carácter espontâneo do movimento.
Examinemos os objectivos do movimento. O 20-21 de Abril aproximou-se extremamente das palavras de ordem bolcheviques, e o 3-4 de Julho cresceu em ligação directa com elas, sob a sua influência e direcção. O partido dos bolcheviques falava de forma completamente aberta, determinada, clara, precisa, para todos o ouvirem, nos seus jornais e na sua agitação verbal, da ditadura do proletariado e do campesinato pobre, da paz e de a propor imediatamente, da confiscação das terras dos latifundiários, destes objectivos principais da guerra civil proletária.
Relativamente aos objectivos da kornilovada, todos nós sabemos, e ninguém da democracia o contesta, que esses objectivos consistiam na ditadura dos latifundiários e da burguesia, na dispersão dos Sovietes, na preparação da restauração da monarquia. O partido dos democratas-constitucionalistas, principal partido kornilovista (dever-se-ia, diga-se de passagem, passar agora a chamar-lhe partido kornilovista), dispondo de uma imprensa maior e de forças de agitação maiores do que os bolcheviques, nunca se decidiu nem se decide a falar abertamente ao povo nem na ditadura da burguesia, nem na dispersão dos Sovietes, nem nos objectivos kornilovistas em geral!
Do ponto de vista dos objectivos do movimento, os factos dizem que a guerra civil proletária pode apresentar-se com a exposição aberta ao povo dos seus objectivos finais, atraindo com isso as simpatias dos trabalhadores, mas a guerra civil burguesa só ocultando os seus objectivos pode tentar conduzir uma parte das massas; daí a enorme diferença quanto à questão da consciência das massas.
Existem dados objectivos sobre esta questão, segundo parece, exclusivamente em relação ao número de filiados nos partidos e às eleições. Parece não haver outros factos que permitam julgar com precisão da consciência das massas. Que o movimento proletário revolucionário é encabeçado pelo partido dos bolcheviques, e o movimento contra-revolucionário burguês pelo partido dos democratas-constitucionalistas, isto é claro e dificilmente pode ser contestado após a experiência de meio ano de revolução. Pode-se invocar três comparações de carácter factual quanto à questão que estamos a examinar. A comparação das eleições de Maio para as Dumas de bairro em Petrogrado com as de Agosto para a Duma central dá a diminuição dos votos democratas-constitucionalistas e um enorme aumento dos votos bolcheviques. A imprensa democrata-constitucionalista reconhece que onde há aglomerações de massas de operários ou de soldados, aí observa-se também, regra geral, a força do bolchevismo.
Depois, o carácter consciente da participação das massas no partido, dada a inexistência de quaisquer estatísticas sobre a flutuação do número dos membros do partido, sobre a assistência às reuniões, etc, só pode ser comprovado nos factos com os dados publicados relativamente às recolhas de fundos para o partido. Estes dados mostram um heroísmo enorme e de massas dos operários bolcheviques na recolha de fundos para o Pravda, para os jornais fechados, etc. Os relatórios sobre as recolhas foram sempre publicados. Nos democratas-constitucionalistas não vemos nada de semelhante: o seu trabalho de partido é «alimentado», é claro, com as contribuições dos ricos. Nem vestígios duma ajuda activa das massas.
Finalmente, a comparação dos movimentos de 20-21 de Abril e de 3-4 de Julho, por um lado, e da kornilovada, por outro, mostra-nos que os bolcheviques apontam directamente às massas o seu inimigo na guerra civil, a saber: a burguesia, os latifundiários e os capitalistas. A kornilovada já mostrou o engano directo das tropas que seguiam Kornílov, engano que foi posto a descoberto logo pelo primeiro encontro da «divisão selvagem» e dos comboios kornilovistas com os petrogradenses.
Prossigamos. Quais são os dados sobre a força do proletariado e da burguesia na guerra civil? A força dos bolcheviques está apenas no número dos proletários, na sua consciência, nas simpatias das «bases» (isto é, os operários e os camponeses pobres) socialistas-revolucionárias e mencheviques pelas palavras de ordem bolcheviques. É um facto que foram precisamente estas palavras de ordem que levaram efectivamente atrás e si a maioria das massas revolucionárias activas em Petrogrado em 20-21 de Abril e em 18 de Junho, e em 3-4 de Julho.
Com esta comparação entre os dados sobre as eleições «parlamentares» e os dados sobre os referidos movimentos de massas confirma-se inteiramente, em relação à Rússia, uma observação feita muitas vezes no Ocidente, a saber: a força do proletariado revolucionário, do ponto de vista da influência sobre as massas e da sua integração na luta, é incomparavelmente maior na luta não parlamentar do que na luta parlamentar. Esta é uma observação muito importante sobre a questão da guerra civil.
É compreensível porque é que todas as condições e todo o ambiente da luta parlamentar e das eleições reduz a força das classes oprimidas em comparação com a força que elas podem desenvolver de facto numa guerra civil.
A força dos democratas-constitucionalistas e da kornilovada está na força da riqueza. Que o capital anglo-francês e o imperialismo estão a favor dos democratas-constitucionalistas e a favor da kornilovada, isto foi demonstrado por uma longa série de intervenções políticas e pela imprensa. É geralmente sabido que toda a «direita» da Conferência de Moscovo de 12 de Agosto estava furiosamente a favor de Kornílov e Kalédine. É geralmente sabido como a imprensa burguesa francesa e inglesa «ajudava» Kornílov. Há indícios de que ele recebia uma ajuda por parte dos bancos.
Toda a força da riqueza se colocou a favor de Kornílov, mas que fracasso tão triste e rápido! As forças sociais que, além dos ricos, podem ver-se com os kornilovistas são apenas duas: a «divisão selvagem» e os cossacos. No primeiro caso, é apenas a força do obscurantismo e do engano. Esta força é tanto mais temível quanto mais a imprensa se mantiver nas mãos da burguesia. O proletariado, triunfando na guerra civil, minaria esto fonte de «força» imediata e radicalmente.
No que se refere aos cossacos, temos aqui uma camada da população formada por proprietários rurais ricos, pequenos e médios (a propriedade rural média é de cerca de 50 deciatinas) duma das zonas periféricas da Rússia que mais conservaram traços medievais de vida, de economia, de costumes. Aqui pode ver-se uma base socioeconómica para uma Vendeia[N134] russa. Mas o que mostraram os factos relativos ao movimento kornilovista-kaledinista? Mesmo Kalédine, o «chefe amado» apoiado pelos Gutchkov, Miliukov, Riabuchínski e C.a, não levantou, apesar de tudo, um movimento de massas!! Kalédine ia para a guerra civil de modo infinitamente mais «directo» e rectilíneo do que os bolcheviques. Kalédine «ia levantar o Don» abertamente, e apesar de tudo Kalédine não levantou nenhum movimento de massas na «sua» região, numa região de cossacos isolada da democracia de toda a Rússia! Pelo contrário, observamos, por parte do proletariado, explosões espontâneas do movimento no centro da influência e da força da democracia antibolchevique de toda a Rússia.
Não há dados objectivos sobre a atitude das diferentes camadas e dos diferentes grupos económicos dos cossacos para com a democracia e para com a kornilovada. Há apenas indícios de que a maioria dos cossacos pobres e médios se inclinam mais para a democracia, e só a oficialidade e as camadas superiores dos cassacos abastados são plenamente kornilovistas.
Seja como for, está historicamente provada, depois da experiência de 26-31 de Agosto, uma extrema fraqueza do movimento cossaco de massas a favor da contra-revolução burguesa.
Resta a última questão: a da tenacidade do movimento. Relativamente ao movimento proletário-revolucionário, bolchevique, já temos o facto provado de que a luta contra o bolchevismo, em meio ano de república na Rússia, foi conduzida como uma luta ideológica, com um predomínio gigantesco dos órgãos de imprensa e das forças de agitação por parte dos opositores do bolchevismo (e com a inclusão muito «arriscada» na luta «ideológica» da campanha de calúnias), e também pela via das acções repressivas: centenas dê pessoas foram presas, foi destruída a tipografia principal, foram encerrados o jornal principal e uma série de jornais. O resultado é mostrado pelos factos: um enorme reforço do bolchevismo nas eleições de Agosto em Petrogrado, depois um reforço das correntes internacionalistas e «de esquerda» que se aproximam do bolchevismo tanto no partido socialista-revolucionário como no menchevique. Quer dizer, a tenacidade do movimento proletário-revolucionário na Rússia republicana é muito grande. Os factos dizem que os esforços conjuntos dos democratas-constitucionalistas, dos socialistas-revolucionários e mencheviques não conseguiram de modo algum enfraquecer este movimento. Pelo contrário, foi precisamente a coligação dos kornilovistas com a «democracia» que reforçou o bolchevismo. Não pode haver outros meios de luta contra a corrente proletária-revolucionária senão uma influência ideológica e acções repressivas.
Por enquanto, não há dados sobre a tenacidade do movimento democrata-constitucionalista-kornilovista. Os democratas-constitucionalistas nunca sofreram perseguições. Até libertaram Gutchkov, até não prenderam Maklakov e Miliukov. Até não fecharam o Retch. Poupam os democratas-constitucionalistas. O governo de Kérenski namora os democratas-constitucionalistas e kornilovistas. E se se colocar a questão da seguinte maneira: suponhamos que os Riabuchínski anglo-franceses e russos ofereçam mais e mais milhões aos democratas-constitucionalistas, ao Edinstvo, ao Den, etc, para uma nova campanha eleitoral em Petrogrado; será crível que o número dos seus votos cresça agora, após a kornilovada? Dificilmente se poderá dar a esta pergunta, a julgar pelas reuniões, etc, uma resposta que não seja negativa . . .
* * *
Ao resumir as conclusões da nossa comparação dos dados da história da revolução russa, obtemos a conclusão de que o início da guerra civil por parte do proletariado revelou a força, a consciência, o enraizamento, o crescimento e a tenacidade do movimento. O início da guerra civil por parte da burguesia não revelou nenhuma força, nenhuma consciência das massas, nenhum enraizamento, nenhumas possibilidades de vitória.
A aliança dos democratas-constitucionalistas com os socialistas-revolucionários e mencheviques contra os bolcheviques, isto é, contra o proletariado revolucionário, foi experimentada na prática no decurso de vários meses, e esta aliança dos kornilovistas, temporariamente ocultos, com a «democracia», levou de facto não ao enfraquecimento mas ao reforço dos bolcheviques, à falência da «coligação», ao reforço da oposição «de esquerda» também entre os mencheviques.
A aliança dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários e mencheviques contra os democratas-constitucionalistas, contra a burguesia, ainda não foi experimentada. Ou, para ser mais preciso, tal aliança foi experimentada apenas numa frente, apenas durante cinco dias, de 26 a 31 de Agosto, durante a kornilovada, e essa aliança permitiu nessa altura alcançar a vitória mais completa, com uma facilidade ainda nunca vista em nenhuma revolução, sobre a contra-revolução, ela permitiu uma vitória tão esmagadora sobre a contra-revolução burguesa, latifundiária e capitalista, imperialista-aliada e democrata-constitucionalista, que deste lado a guerra civil foi pulverizada, se transformou em nada desde o próprio começo, se desagregou antes de qualquer «combate».
E perante este facto histórico toda a imprensa burguesa, com todos os seus porta-vozes (os Plekhánov, Potréssov, Brechko-Brechkóvskaia, etc), grita com todas as forças que é precisamente a aliançados bolcheviques com os mencheviques e socialistas-revolucionários que «ameaça» com os horrores da guerra civil!.
Isto seria ridículo se não fosse triste. É triste que em geral possa encontrar ouvintes semelhante absurdo claro, evidente, clamoroso, semelhante troça dos factos, de toda a história da nossa revolução . . . Isto prova que está ainda enormemente difundida a mentira burguesa e interesseira (e a difusão é inevitável enquanto a imprensa estiver monopolizada pela burguesia), mentira que submerge e abafa as lições mais indubitáveis, palpáveis e indiscutíveis da revolução.
Se existe uma lição da revolução absolutamente indiscutível, absolutamente provada pelos factos, é que unicamente uma aliança dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários e mencheviques, unicamente uma passagem imediata de todo o poder aos Sovietes tornaria impossível uma guerra civil na Rússia. Pois contra tal aliança, contra os Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses é inconcebível qualquer guerra civil iniciada pela burguesia, tal «guerra» não chegaria sequer a um só combate, a burguesia não encontrará pela segunda vez, depois da kornilovada, nem sequer a «divisão selvagem», nem sequer o número anterior de comboios de cossacos para o movimento contra o Governo Soviético!
O desenvolvimento pacífico de qualquer revolução em geral é uma coisa extraordinariamente rara e difícil, pois a revolução é a maior agudização das contradições de classe mais agudas, mas num país camponês, quando a aliança do proletariado e do campesinato pode dar a paz às massas esgotadas pela guerra mais injusta e mais criminosa, e toda a terra ao campesinato — em tal país, em tal momento histórico excepcional, com a passagem de todo o poder para os Sovietes, um desenvolvimento pacífico da revolução é possível e provável. A luta de partidos pelo poder dentro dos Sovietes pode decorrer pacificamente se os Sovietes forem plenamente democráticos, se eles renunciarem aos «pequenos furtos», ao «roubo» dos princípios democráticos, tais como a concessão aos soldados de um representante por cada 500 eleitores, e aos operários de um por cada 1000. Numa república democrática tais pequenos furtos estão condenados ao desaparecimento.
Contra os Sovietes que entregam toda a terra sem indemnização aos camponeses e que propõem uma paz justa a todos os povos, contra tais Sovietes não é de modo algum de temer, é completamente impotente qualquer aliança da burguesia anglo-francesa e russa, dos Kornílov, dos Buchanan e dos Riabuchínski, dos Miliukov com os Plekhánov e os Potréssov. A resistência da burguesia contra a entrega da terra aos camponeses sem indemnização, contra semelhantes transformações em outros domínios da vida, contra a paz justa e o rompimento com o imperialismo, tal resistência, naturalmente, é inevitável. Mas para a resistência chegar à guerra civil, para isto são necessárias massas, por pouco numerosas que sejam, capazes de combater e vencer os Sovietes. Mas a burguesia não tem tais massas e não tem onde as ir buscar. Quanto mais rápida e decididamente os Sovietes tomarem todo o poder tanto mais depressa se cindirão tanto as «divisões selvagens» como os cossacos, se cindirão na minoria mais insignificante de kornilovistas conscientes e na enorme maioria dos partidários da aliança democrática e socialista (pois tratar-se-á então precisamente do socialismo) dos operários e camponeses.
Com a passagem do poder para os Sovietes, a resistência da burguesia levará a que cada capitalista será «seguido», vigiado, controlado e registado por dezenas e centenas de operários e camponeses, cujo interesse exigirá que seja combatido o engano do povo pelos capitalistas. As formas e métodos deste registo e controlo foram elaborados e simplificados precisamente pelo capitalismo, precisamente por criações do capitalismo tais como os bancos, as grandes fábricas, os consórcios, os caminhos-de-ferro, os correios, as sociedades de consumidores e os sindicatos. Bastará que os Sovietes castiguem os capitalistas que se furtam ao controlo mais pormenorizado ou enganam o povo com a confiscação de todos os seus bens e prendendo-os por um período breve para quebrar, sem derramamento de sangue, toda a resistência da burguesia. Pois é precisamente através dos bancos, uma vez nacionalizados, é precisamente através dos sindicatos de empregados, através dos correios, através das sociedades de consumidores, através dos sindicatos, que o controlo e o registo se tornarão universais, omnipotentes, omnipresentes e invencíveis.
E os Sovietes russos, a aliança dos operários e camponeses pobres russos, não estão sós nos seus passos para o socialismo. Se estivéssemos sós, não teríamos forças para realizar esta tarefa até ao fim e pacificamente, pois esta tarefa é, no fundo, internacional. Mas nós temos uma reserva grandiosa, os exércitos de operários mais avançados noutros países, nos quais o rompimento da Rússia com o imperialismo e com a guerra imperialista acelerará inevitavelmente a revolução operária, socialista, que neles amadurece.
* * *
Falam de «torrentes de sangue» na guerra civil. Di-lo a resolução dos democratas-constitucionalistas-kornilovistas, citada atrás. Esta frase é repetida de mil maneiras por todos os burgueses e por todos os oportunistas. Dela riem e rirão, não podem deixar de rir depois da kornilovada, todos os operários conscientes.
Mas a questão das «torrentes de sangue» no tempo de guerra que vivemos pode e deve ser colocada na base de um cômputo aproximado das forças, de um cálculo das consequências e resultados, tomada seriamente e não como uma oca frase corrente, não apenas como uma hipocrisia dos democratas-constitucionalistas, que tudo fizeram pela sua parte para Kornílov conseguir inundar a Rússia com «torrentes de sangue», a fim de restaurar a ditadura da burguesia, o poder dos latifundiários e a monarquia.
«Torrentes de sangue», dizem-nos. Consideremos também este lado da questão.
Suponhamos que continuam as vacilações dos mencheviques e socialistas-revolucionários, eles não entregam o poder aos Sovietes, não derrubam Kérenski, restabelecem o velho e apodrecido compromisso com a burguesia sob uma forma um pouco diferente (em lugar dos democratas-constitucionalistas, por exemplo, kornilovistas «sem partido»), não substituem o aparelho do poder de Estado pelo aparelho soviético, não propõem a paz, não rompem com o imperialismo, não confiscam as terras dos latifundiários. Suponhamos que este é o desenlace das vacilações actuais dos socialistas-revolucionários e mencheviques, que este é o desenlace do «12 de Setembro».
A experiência da nossa própria revolução diz de forma absolutamente clara que a consequência disto seria um enfraquecimento ainda maior dos socialistas-revolucionários e mencheviques, uma separação ainda maior deles com as massas, um aumento incrível da indignação e da exasperação nas massas, um aumento enorme das simpatias para com o proletariado revolucionário, para com os bolcheviques.
O proletariado da capital estará então ainda mais perto do que agora da comuna, da insurreição operária, da tomada do poder nas suas mãos, da guerra civil na sua forma mais elevada e decidida: depois da experiência de 20-21 de Abril e de 3-4 de Julho, tal resultado deve ser reconhecido como historicamente inevitável.
«Torrentes de sangue», gritam os democratas-constitucionalistas. Mas semelhantes torrentes de sangue dariam a vitória ao proletariado e ao campesinato pobre, e esta vitória, com noventa e nove por cento de probabilidades, daria a paz em lugar da guerra imperialista, isto é, pouparia a vida a centenas de milhares de pessoas que hoje derramam o seu sangue por causa da partilha dos lucros e das conquistas (anexações) dos capitalistas. Se o 20-21 de Abril tivesse terminado com a passagem de todo o poder para os Sovietes e desse a vitória dentro deles aos bolcheviques em aliança com o campesinato pobre, então, mesmo que isto tivesse custado «torrentes de sangue», isto salvaria a vida a meio milhão de soldados russos, que morreram decerto nos combates de 18 de Junho.
Assim calcula e assim calculará cada operário e soldado consciente russo, se ponderar e tomar em consideração a questão da guerra civil que se coloca actualmente por toda a parte, e, naturalmente, tal operário e soldado, que viveu e reflectiu alguma coisa, não se assustará com os clamores acerca das «torrentes de sangue» lançadas pelos homens, partidos e grupos que desejam sacrificar as vidas de novos milhões de soldados russos por Constantinopla, por Lvov, por Varsóvia, pela «vitória sobre a Alemanha».
Nenhumas «torrentes de sangue» numa guerra civil interna se comparam sequer aproximadamente com aqueles mares de sangue que os imperialistas russos derramaram depois de 19 de Junho (a despeito das probabilidades extraordinariamente elevadas de o evitar por meio da entrega do poder aos Sovietes).
Em tempo de guerra, senhores Miliukov, Potréssov, Plekhánov, argumentai mais cuidadosamente contra as «torrentes de sangue» na guerra civil, pois os soldados conhecem e viram mares de sangue.
A situação internacional da revolução russa agora, em 1917, no quarto ano de uma guerra criminosíssima, inauditamente pesada, que esgotou os povos, é tal que a proposta duma paz justa pelo proletariado russo vencedor na guerra civil significaria noventa e nove por cento de probabilidades de conseguir um armistício e a paz sem derramar outros mares de sangue.
Porque a união dos imperialismos anglo-francês e alemão, inimigos entre si, contra a república proletária socialista da Rússia é na prática impossível, e a união dos imperialismos inglês, japonês e americano contra nós é extremamente difícil de realizar e não nos assusta de modo nenhum em virtude da própria situação geográfica da Rússia. E, entretanto, a existência de massas proletárias revolucionárias e socialistas dentro de todos os Estados europeus é um facto, o amadurecimento e a inevitabilidade da revolução socialista mundial não oferece dúvidas, e não se pode ajudar seriamente esta revolução, naturalmente, com delegações e com o jogo às conferências de Estocolmo com os Plekhánov ou os Tseretéli estrangeiros, mas apenas com o movimento para a frente da revolução russa.
Os burgueses gritam sobre uma derrota inevitável da comuna na Rússia, isto é, a derrota do proletariado se ele conquistasse o poder.
São gritos mentirosos, gritos interesseiros e de classe.
Ao conquistar o poder, o proletariado da Rússia tem todas as probabilidades de o manter e de dirigir a Rússia até à revolução vitoriosa no Ocidente.
Porque, em primeiro lugar, aprendemos muito desde o tempo da Comuna e não repetiríamos os seus erros fatais, não deixaríamos ficar a banca nas mãos da burguesia, não nos limitaríamos a defender-nos contra os nossos versalheses (isto é, os kornilovistas), mas passaríamos à ofensiva contra eles e esmagá-los-íamos.
Em segundo lugar, o proletariado vitorioso dará a paz à Rússia. E nenhuma força derrubará o governo da paz, o governo de uma paz justa, sincera, honrada, depois de todos os horrores de mais de três anos de massacre dos povos.
Em terceiro lugar, o proletariado vitorioso dará a terra, imediatamente e sem indemnização, ao campesinato. E a maioria gigantesca do campesinato, esgotado e exasperado pelo «jogo com os latifundiários» que o nosso governo pratica, sobretudo o governo de «coligação», sobretudo o governo de Kérenski, apoiará por todos os meios, inteiramente e sem reservas o proletariado vitorioso.
Falais todos em «esforços heróicos» do povo, senhores mencheviques e socialistas-revolucionários. Há apenas uns dias encontrei essa frase uma e outra vez no editorial do vosso Izvéstia TsIK. Em vós isto é apenas uma frase. Mas os operários e camponeses que a lêem pensam nela, e cada reflexão, apoiada pela «experiência» da kornilovada, pela experiência do ministério de Pechekhónov, pelas «experiências» do ministério de Tchernov e assim por diante, cada reflexão conduz inevitavelmente a esta conclusão: mas este «esforço heróico» não é senão a confiança do campesinato pobre nos operários da cidade como seus mais fiéis aliados e chefes. O esforço heróico não é senão a vitória do proletariado russo sobre a burguesia na guerra civil, pois só tal vitória salvará de vacilações dolorosas, só ela dará uma saída, dará a terra, dará a paz.
Se se pode realizar a aliança dos operários da cidade com o campesinato pobre através da passagem imediata do poder aos Sovietes, tanto melhor. Os bolcheviques farão tudo para assegurar esta via pacífica do desenvolvimento da revolução. Sem isto, nem a Assembleia Constituinte, por si só, será a salvação, porque também nela os socialistas-revolucionários poderão continuar o «jogo» aos acordos com os democratas-constitucionalistas, com Brechko-Brechkóvskaia e Kérenski (em que são eles melhores do que os democratas-constitucionalistas?), etc, etc.
Se nem sequer a experiência da kornilovada ensinou a «democracia» e se ela continuar a sua política funesta de vacilações e de conciliação, então diremos: nada destrói tanto a revolução proletária como estas vacilações. Não intimideis, pois, senhores, com a guerra civil: ela é inevitável se não quiserdes ajustar contas, agora mesmo e até ao fim, com a kornilovada e com a «coligação» — então esta guerra dará a vitória sobre os exploradores, dará a terra aos camponeses, dará a paz aos povos, abrirá um caminho seguro para a revolução vitoriosa do proletariado socialista mundial.
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