sábado, 29 de novembro de 2008

Que é o Internacionalismo?

Kautsky, com a maior convicção, considera-se e proclama-se internacionalista. Aos Scheidemann qualifica-os de «socialistas governamentais». Ao defender os mencheviques (Kautsky não diz abertamente que está solidário com eles, mas aplica completamente as suas ideias), Kautsky revelou com extraordinária evidência o que é o seu «internacionalismo». E como Kautsky não é um indivíduo isolado, mas um representante duma corrente que inevitavelmente nasceu no ambiente da II Internacional (Longuet em França, Turati na Itália, Nobs e Grimm, Graber e Naine na Suíça, Ramsay MacDonald na Inglaterra, etc), é instrutivo determo-nos no «internacionalismo» de Kautsky.
Depois de sublinhar que os mencheviques também estiveram em Zimmerwald (é um diploma, sem dúvida, mas. . . um diploma apodrecido), Kautsky traça o seguinte quadro das ideias dos mencheviques, com as quais está de acordo:
«... Os mencheviques queriam uma paz geral. Queriam que todos os beligerantes aceitassem a palavra de ordem: sem anexações nem contribuições. Enquanto isto não se conseguisse, o exército russo, segundo este ponto de vista, devia manter-se em disposição de combate. Os bolcheviques, por seu lado, exigiam a paz imediata a todo o custo, estavam dispostos a concluir uma paz separada em caso de necessidade, esforçavam-se por impô-la por meio da força, aumentando a desorganização do exército, que sem isso já era grande» (p. 27).
Segundo Kautsky, os bolcheviques não deviam tomar o poder, mas contentar-se com a Constituinte.
Assim, o internacionalismo de Kautsky e dos mencheviques consiste no seguinte: exigir reformas do governo burguês imperialista, mas continuar a apoiá-lo, continuar a apoiar a guerra travada por esse governo até que todos os beligerantes tenham aceitado a palavra de ordem: sem anexações nem contribuições. Esta ideia têm-na expressado muitas vezes Turati, os kautskistas (Haase e outros) e Longuet e C.a, que declararam que eram pela «defesa da Pátria».
Teoricamente, isto é uma total incapacidade de se separar dos sociais-chauvinistas e uma completa confusão na questão da defesa da pátria. Politicamente, é substituir o internacionalismo pelo nacionalismo pequeno-burguês e passar para o lado do reformismo, renegar a revolução.
Reconhecer a «defesa da pátria» é, do ponto de vista do proletariado, justificar esta guerra, reconhecer a sua legitimidade. E como a guerra continua a ser imperialista (tanto sob a monarquia como sob a república) — independentemente de onde se encontram as tropas inimigas num determinado momento, no meu país ou em país estrangeiro — reconhecer a defesa da pátria é de facto apoiar a burguesia imperialista e espoliadora, trair completamente o socialismo. Na Rússia, mesmo sob Kérenski, na república democrática burguesa, a guerra continuava a ser imperialista, porque era feita pela burguesia como classe dominante (e a guerra é a «continuação da Política»); uma expressão particularmente patente do carácter imperialista da guerra eram os tratados secretos sobre a partilha do mundo e a pilhagem de países estrangeiros, concluídos pelo ex-tsar com os capitalistas da Inglaterra e da França.
Os mencheviques enganavam miseravelmente o povo chamando a esta guerra defensiva ou revolucionária, e Kautsky, ao aprovar a política dos mencheviques, aprova que se engane o povo, aprova o papel dos pequenos burgueses, que servem o capital iludindo os operários e amarrando-os ao carro dos imperialistas. Kautsky prossegue uma política tipicamente pequeno-burguesa, filistina, imaginando (e inculcando nas massas a ideia absurda) de que lançar uma palavra de ordem modifica as coisas. Toda a história da democracia burguesa desmascara esta ilusão: para enganar o povo, os democratas burgueses lançaram e lançam sempre todas as «palavras de ordem» imagináveis. A questão está em comprovar a sua sinceridade, em comparar as palavras com os actos, em não se contentar com frases idealistas ou charlatanescas, mas em procurar encontrar a realidade de classe. A guerra imperialista não deixa de ser imperialista quando os charlatães ou fraseadores ou os pequenos burgueses filisteus lançam uma «palavra de ordem» adocicada, mas apenas quando a classe que trava a guerra imperialista e está ligada a ela por milhões de fios (e mesmo cabos) económicos, é de facto derrubada e quando é substituída no poder pela classe verdadeiramente revolucionária, o proletariado. Doutro modo é impossível livrar-se duma guerra imperialista, assim como duma paz imperialista, espoliadora.
Aprovando a política externa dos mencheviques, declarando-a internacionalista e zimmerwaldiana, Kautsky em primeiro lugar demonstra com isto toda a podridão da maioria oportunista de Zimmerwald (não foi sem razão que nós, a esquerda de Zimmerwald[N56], nos separámos imediatamente duma tal maioria!), e em segundo lugar —e isto é o principal — Kautsky passa da posição do proletariado para a posição da pequena burguesia, da posição revolucionária para a posição reformista.
O proletariado luta pelo derrubamento revolucionário da burguesia imperialista, a pequena burguesia pelo «aperfeiçoamento» reformista do imperialismo, pela adaptação a ele, submetendo-se a ele. Quando Kautsky ainda era marxista, por exemplo em 1909, quando escreveu O Caminho para o Poder, defendia precisamente a ideia da inevitabilidade da revolução em ligação com a guerra, falava da proximidade de uma era de revoluções. O Manifesto de Basileia de 1912 fala directa e definidamente da revolução proletária em ligação com essa mesma guerra imperialista entre os grupos alemão e inglês, que eclodiu em 1914. E em 1918, quando começaram as revoluções em ligação com a guerra, em vez de explicar a sua inevitabilidade, em vez de ponderar e examinar até ao fim a táctica revolucionária, os processos e meios de preparação para a revolução, Kautsky pôs-se a chamar internacionalismo à táctica reformista dos mencheviques. Não é isto um procedimento de renegado?
Kautsky elogia os mencheviques porque insistiram em que se mantivesse o exército em disposição de combate. Censura os bolcheviques por terem aumentado a «desorganização do exército», que sem isso já era grande. Isto significa elogiar o reformismo e submeter-se à burguesia imperialista, censurar a revolução e renegá-la. Porque sob Kérenski manter a disposição de combate significava e era conservar o exército com o comando burguês (ainda que republicano). Toda a gente sabe — e o curso dos acontecimentos demonstrou-o com evidência — que este exército republicano conservava o espírito kornilovista, graças aos seus quadros de comando kornilovistas. A oficialidade burguesa não podia deixar de ser kornilovista, não podia deixar de se inclinar para o imperialismo, para a repressão violenta do proletariado. A táctica dos mencheviques reduzia-se de facto a conservar inalteradas todas as bases da guerra imperialista, todas as bases da ditadura burguesa, a resolver miudezas, a retocar ninharias («reformas»).
Pelo contrário, nenhuma grande revolução prescindiu nem pode prescindir da «desorganização do exército». Porque o exército é o instrumento mais empedernido de apoio ao velho regime, o baluarte mais endurecido da disciplina burguesa e de apoio à dominação do capital, da manutenção e da formação da submissão e da subordinação servis dos trabalhadores ao capital. A contra-revolução nunca tolerou nem podia tolerar a existência de operários armados ao lado do exército. Em França — escrevia Engels —, os operários ficaram armados depois de cada revolução; «por isso, para os burgueses que se encontravam ao leme do Estado, o primeiro imperativo era desarmar os operários [N57]». Os operários armados eram o germe de um exército novo, a célula organizativa do novo regime social. Esmagar esta célula, não a deixar crescer, era o primeiro imperativo da burguesia. O primeiro imperativo de quafquer revolução vitoriosa — Marx e Engels sublinharam-no muitas vezes — foi destruir o velho exército, dissolvê-lo e substituí-lo por um novo[N58]. A nova classe social que sobe ao poder nunca pôde nem pode agora conseguir esse poder nem consolidá-lo sem decompor por completo o antigo exército («desorganização», clamam a este respeito os pequenos burgueses reaccionários ou simplesmente cobardes); sem passar por um período muito difícil e doloroso sem qualquer exército (a grande revolução francesa passou também por esse período doloroso); sem formar gradualmente, numa dura guerra civil, o novo exército, a nova disciplina, a nova organização militar da nova classe. O historiador Kautsky compreendia-o antigamente. O renegado Kautsky esqueceu-o.
Que direito tem Kautsky de chamar aos Scheidemann «socialistas governamentais», se ele aprova a táctica dos mencheviques na revolução russa? Os mencheviques, ao apoiarem Kérenski, ao entrarem no seu ministério, eram igualmente socialistas governamentais. Kautsky não poderá de modo algum eludir esta conclusão, se procurar colocar a questão da classe dominante, que faz a guerra imperialista. Mas Kautsky evita colocar a questão da classe dominante, questão obrigatória para um marxista, porque bastaria colocar tal questão para desmascarar o renegado.
Os kautskistas na Alemanha, os longuetistas[N59] na França, Turati e C.a na Itália, raciocinam assim: o socialismo pressupõe a igualdade e a liberdade das nações, a sua autodeterminação; portanto, quando o nosso país é atacado ou quando tropas inimigas invadem o nosso território, os socialistas tem o direito e o dever de defender a pátria. Mas este raciocínio é, do ponto de vista teórico, ou um escárnio completo em relação ao socialismo ou um subterfúgio fraudulento, e, do ponto de vista político e prático, este raciocínio coincide com o de um homenzinho completamente ignorante que nem sequer sabe pensar no carácter social, de classe, da guerra nem nas tarefas do Partido revolucionário durante a guerra reaccionária.
O socialismo é contra a violência sobre as nações. Isto é indiscutível. Mas o socialismo é em geral contra a violência sobre os homens. No entanto, exceptuando os anarquistas cristãos e os tolstoianos, ninguém ainda deduziu daí que o socialismo é contra a violência revolucionária. Portanto, falar de «violência» em geral, sem examinar as condições que diferenciam a violência reaccionária da revolucionária, é ser um filisteu que renega a revolução, ou simplesmente enganar-se e enganar os outros com sofismas.
O mesmo se pode dizer da violência sobre as nações. Toda a guerra consiste em violência sobre as nações, mas isso não impede os socialistas de serem a favor da guerra revolucionária. O carácter de classe duma guerra: essa é a questão fundamental que se coloca a um socialista (se não é um renegado). A guerra imperialista de 1914-1918 é uma guerra entre os dois grupos da burguesia imperialista pela partilha do mundo, pela partilha do saque, pela pilhagem e estrangulamento das nações pequenas e fracas. Foi esta a apreciação da guerra feita pelo Manifesto de Basileia de 1912, foi esta a apreciação que os factos confirmaram. Quem se afastar deste ponto de vista sobre a guerra não é socialista.
Se um alemão sob Guilherme ou um francês sob Clemenceau disser: tenho o direito e o dever, como socialista, de defender a pátria se o inimigo a invadir — este raciocínio não é de um socialista, de um internacionalista, de um proletário revolucionário, mas de um filisteu nacionalista. Porque neste raciocínio desaparece a luta revolucionária de classe do operário contra o capital, desaparece a apreciação de toda a guerra no seu conjunto, do ponto de vista da burguesia mundial e do proletariado mundial, isto é, desaparece o internacionalismo e fica um nacionalismo miserável e inveterado. Ofendem o meu país, o resto não me importa: eis a que se reduz esse raciocínio, eis onde reside a sua estreiteza nacionalista e filistina. É como se alguém raciocinasse assim em relação à violência individual contra uma pessoa: o socialismo é contra a violência, por isso prefiro cometer uma traição a ir parar à cadeia.
O francês, o alemão ou o italiano que disser: o socialismo é contra a violência sobre as nações, por isso defendo-me quando o inimigo invade o meu país — trai o socialismo e o internacionalismo. Pois esse homem vê apenas o seu «país», coloca acima de tudo a «sua». . . burguesia, sem pensar nas ligações internacionais que tornam a guerra imperialista, que fazem da sua burguesia um elo na cadeia da rapina imperialista.
Todos os filisteus e todos os homenzinhos obtusos e ignorantes raciocinam exactamente como raciocinam os renegados kautskistas, longuetistas, Turati e C.a, a saber: o inimigo está no meu país, o resto não me importa(1*).
O socialista, o proletário revolucionário, o internacionalista, raciocina de modo diferente: o carácter da guerra (seja ela reaccionária ou revolucionária) não depende de quem atacou nem de qual o país em que se encontra o «inimigo», mas de qual a classe que conduz a guerra, de qual a política de que essa guerra é a continuação. Se essa guerra é uma guerra imperialista reaccionária, isto é, conduzida por dois grupos mundiais da burguesia imperialista, opressora, espoliadora e reaccionária, qualquer burguesia (mesmo a de um pequeno país) se torna cúmplice da rapina, e a minha tarefa, a tarefa dum representante do proletariado revolucionário, é preparar a revolução proletária mundial como únicasalvação dos horrores da matança mundial. Não é do ponto de vista do «meu» país que devo raciocinar (porque esse é o raciocínio de um estúpido miserável, dum filisteu nacionalista, que não compreende que é um joguete nas mãos da burguesia imperialista), mas do ponto de vista da minha participação na preparação, na propaganda, na aproximação da revolução proletária mundial.
Eis o que é o internacionalismo, eis qual a tarefa do internacionalista, do operário revolucionário, do verdadeiro socialista. Este é o á-bê-cê que o renegado Kautsky «esqueceu». E a sua renegação torna-se ainda mais evidente quando ele, depois de ter aprovado a táctica dos nacionalistas pequeno-burgueses (mencheviques na Rússia, longuetistas na França, Turati na Itália, Haase e C.a na Alemanha), passa à crítica da táctica bolchevique. Eis essa crítica:
«A revolução bolchevique baseava-se na hipótese de que serviria de ponto de partida para a revolução europeia geral; de que a iniciativa audaciosa da Rússia incitaria os proletários de toda a Europa a erguerem-se.
Com tal hipótese, era naturalmente indiferente que formas tomaria a paz separada russa, que sacrifícios e perdas territoriais (literalmente: mutilações ou estropiações, Verstümmelungen) traria ao povo russo, que interpretação daria à autodeterminação das nações. Então era também indiferente se a Rússia era ou não capaz de defender-se. Deste ponto de vista, a revolução europeia era a melhor defesa da revolução russa, devia trazer a todos os povos do antigo território russo uma verdadeira e completa autodeterminação.
A revolução na Europa, que traria o socialismo e o consolidaria, devia também tornar-se um meio para eliminar os obstáculos que o atraso económico do país levantava à realização da produção socialista na Rússia.
Tudo isso era muito lógico e bem fundado desde que se admitisse uma hipótese fundamental: que a revolução russa devia desencadear infalivelmente a europeia. Mas, e se assim não acontecesse'
Até agora não se confirmou esta hipótese. E agora acusam os proletários da Europa de terem abandonado e atraiçoado a revolução russa. É uma acusação contra desconhecidos, pois a quem se pode responsabilizar pela conduta do proletariado europeu?» (p. 28).
E Kautsky mastiga adicionalmente que Marx, Engels e Bebel se enganaram muitas vezes a respeito da eclosão da revolução que esperavam, mas que nunca basearam a sua táctica na espera da revolução «numa data determinada» (p. 29), enquanto, segundo ele, os bolcheviques «jogaram tudo numa so carta, na da revolução europeia geral».
Reproduzimos deliberadamente uma citação tão longa para mostrar ao leitor de modo evidente com que «habilidade» Kautsky falsifica o marxismo, substituindo-o por uma concepção filistina vulgar e reaccionária.
Em primeiro lugar, atribuir ao adversário uma estupidez manifesta e depois refutá-la é procedimento de pessoas não muito inteligentes. Se os bolcheviques baseassem a sua táctica na espera da revolução noutros países numa data determinada, isto seria uma estupidez indiscutível. Mas o partido bolchevique não cometeu esta estupidez: na minha carta aos operários americanos (20.VIII.1918) rejeito abertamente esta estupidez, dizendo que contamos com a revolução americana, mas não numa data determinada. Na minha polémica contra os socialistas-revolucionários de esquerda[N60] e os «comunistas de esquerda»[N61] (Janeiro-Março de 1918) desenvolvi repetidas vezes a mesma ideia. Kautsky fez uma pequena . . . uma pequeníssima falsificação, baseando nela a sua crítica do bolchevismo. Kautsky mete num mesmo saco a táctica que conta com a revolução europeia para uma data mais ou menos próxima, mas não determinada, e a táctica que conta com a revolução europeia numa data determinada. Uma pequena, uma pequeníssima fraude!
A segunda táctica é uma estupidez. A primeira é obrigatória para um marxista, para todo o proletário revolucionário e internacionalista; obrigatória, porque só ela tem correctamente em conta, de uma maneira marxista, a situação objectiva criada pela guerra em todos os países europeus, só ela responde às tarefas internacionais do proletariado.
Substituindo a grande questão dos fundamentos da táctica revolucionária em geral pela pequena questão do erro que os revolucionários bolcheviques poderiam ter cometido, mas que não cometeram, Kautsky renunciou alegremente à táctica revolucionária em geral!
Renegado em política, em teoria ele não sabe sequer colocar a questão das premissas objectivas da táctica revolucionária. E aqui chegamos ao segundo ponto.
Em segundo lugar, é obrigatório para um marxista contar com a revolução europeia, se existe uma situação revolucionária. É uma verdade elementar do marxismo que a táctica do proletariado socialista não pode ser a mesma quando existe uma situação revolucionária e quando ela não existe.
Se Kautsky tivesse colocado esta questão, obrigatória para um marxista, teria visto que a resposta era absolutamente contra ele. Muito antes da guerra, todos os marxistas, todos os socialistas estavam de acordo em que a guerra europeia criaria uma situação revolucionária. Kautsky reconhecia isto clara e terminantemente quando ainda não era um renegado, tanto em 1902 (A Revolução Social) como em 1909 (O Caminho para o Poder). O Manifesto de Basileia reconheceu isto em nome de toda a II Internacional: não é sem razão que os sociais-chauvinistas e os kautskistas (os «centristas», pessoas que vacilam entre os revolucionários e os oportunistas) de todos os países temem como o fogo as correspondentes declarações do Manifesto de Basileia!
Portanto, a espera de uma situação revolucionária na Europa não era um arrebatamento dos bolcheviques, mas a opinião geral de todos os marxistas.
Se Kautsky elude esta verdade indiscutível com frases acerca de que os bolcheviques «sempre acreditaram na omnipotência da violência e da vontade», isto não é mais do que uma frase vazia que encobre a fuga — a vergonhosa fuga — de Kautsky à formulação da questão da situação revolucionária.
Continuemos. Começou de facto uma situação revolucionária ou não? Kautsky também não soube colocar esta questão. A resposta a ela dada por factos económicos: a fome e a ruína, que a guerra criou em toda a parte, significam uma situação revolucionária. Respondem a esta questão também factos políticos: já desde 1915 se manifesta claramente em todos os países um processo de cisão nos velhos e apodrecidos partidos socialistas, um processo de afastamento das massas do proletariado dos chefes sociais-chauvinistas para a esquerda, para as ideias e o estado de espírito revolucionários, para os chefes revolucionários.
Em 5 de Agosto de 1918, quando Kautsky escrevia a sua brochura, só um homem que temesse a revolução e a atraiçoasse podia deixar de ver estes factos. E agora, em fins de Outubro de 1918, a revolução cresce diante dos nossos olhos, e com grande rapidez, numa série de países da Europa. O «revolucionário» Kautsky, que quer que o considerem marxista como antes, revelou-se um filisteu míope que — como os filisteus de 1847, ridicularizados por Marx — não viu a revolução que se aproxima!! Chegámos ao terceiro ponto.
Em terceiro lugar, quais são as particularidades da táctica revolucionária, na condição de existir uma situação revolucionária europeia? Kautsky, tendo-se tornado um renegado, tem medo de colocar esta questão, obrigatória para um marxista. Kautsky raciocina como um típico filisteu pequeno-burguês ou como um camponês ignorante: começou a «revolução europeia geral» ou não? Se começou, também ele está disposto a tornar-se revolucionário! Mas então — observaremos nós — qualquer canalha (como os miseráveis que por vezes se juntam agora aos bolcheviques vitoriosos) se declarará revolucionário!
Se não, então Kautsky volta costas à revolução! Kautsky não possui nem sombra de compreensão da verdade de que aquilo que distingue o marxista revolucionário do pequeno burguês e do filisteu é saber pregar às massas ignorantes a necessidade da revolução que amadurece, demonstrar a sua inevitabilidade, explicar a sua utilidade para o povo, preparar para ela o proletariado e todas as massas trabalhadoras exploradas.
Kautsky atribuiu aos bolcheviques o absurdo de terem jogado tudo numa carta, contando que a revolução europeia começaria numa data determinada. Este absurdo voltou-se contra Kautsky, porque dele decorre exactamente que a táctica dos bolcheviques teria sido correcta se a revolução europeia tivesse começado em 5 de Agosto de 1918! É precisamente esta a data que Kautsky menciona como sendo a da redacção da sua brochura. E guando algumas semanas depois desse 5 de Agosto se tornou claro que a revolução começa numa série de países europeus, toda a renegação de Kautsky, toda a sua falsificação do marxismo, toda a sua incapacidade de raciocinar revolucionariamente e mesmo de colocar as questões revolucionariamente se manifestaram com todo o seu fascínio!
Quando se acusa de traição os proletários da Europa —, escreve Kautsky —, é uma acusação contra desconhecidos.
Engana-se, Sr. Kautsky! Veja-se ao espelho e verá os «desconhecidos» contra os quais é dirigida esta acusação. Kautsky faz-se ingénuo, finge não compreender quem lançou tal acusação e qual o sentido que ela tem. Mas na realidade Kautsky sabe muito bem que esta acusação foi e é formulada pelos «esquerdas» alemães, os spartakistas[N62], Liebknecht e os seus amigos. Esta acusação exprime a clara consciência de que o proletariado alemão cometeu uma traição à revolução russa (e internacional) quando estrangulou a Finlândia, a Ucrânia, a Letónia e a Estónia. Esta acusação é dirigida, antes de mais e sobretudo, não contra a massa, sempre oprimida, mas contra os chefes que, como os Scheidemann e os Kautsky, não cumpriram o seu dever de agitação revolucionária, de propaganda revolucionária, de trabalho revolucionário entre as massas contra a sua inércia, chefes que agiram de facto para cortar o caminho aos instintos e às aspirações revolucionárias sempre latentes na profundeza da massa de uma classe oprimida. Os sheidernann traíram aberta, grosseira e cinicamente o proletariado, a maior parte das vezes por motivos egoístas, e passaram para o lado da burguesia. Os kautskistas e os longuetistas fizeram o mesmo, vacilando, hesitando, olhando cobardemente para os que naquele momento eram fortes. Durante a guerra, Kautsky, com todos os seus escritos, tentou extinguir o espírito revolucionário, em vez de o apoiar e desenvolver.
Ficará como um monumento simplesmente histórico da idiotice filistina do chefe «médio» da social-democracia oficial alemã o facto de Kautsky não compreender sequer a gigantesca importância teórica e a importância ainda maior para a agitação e a propaganda desta «acusação» aos proletários da Europa de que traíram a revolução russa! Kautsky não compreende que esta «acusação» é — sob a censura do «Império» alemão — quase a única forma sob a qual os socialistas alemães que não traíram o socialismo, Liebknecht e os seus amigos, expressam o seu apelo aos operários alemães para se livrarem dos Scheidemann e dos Kautsky, para repelirem tais «chefes», para se libertarem das suas prédicas embrutecedoras e vulgares, para que se ergam apesar deles, sem eles e por cima deles, rumo à revolução, para a revolução! Kautsky não o compreende. Como pode ele compreender então a táctica dos bolcheviques? Poder-se-á esperar que um homem que renuncia à revolução em geral, pese e aprecie as condições do desenvolvimento da revolução num dos casos mais «difíceis»?
A táctica dos bolcheviques era correcta, era a única táctica internacionalista, porque não se baseava no receio cobarde da revolução mundial, numa «incredulidade» filistina em relação a ela, num desejo nacionalista estreito de defender a «sua» pátria (a pátria da sua burguesia), «cuspindo» em tudo o resto; ela baseava-se num cálculo correcto (reconhecido por todos antes da guerra, antes da renegação dos sociais-chauvinistas e sociais-pacifistas) da situação revolucionária europeia. Esta táctica era a única internacionalista, pois fazia o máximo daquilo que era realizável num só país para desenvolver, apoiar e despertar a revolução em todos os países. Esta táctica foi justificada por um êxito enorme, pois o bolchevismo (de modo nenhum por força dos méritos dos bolcheviques russos, mas por força da mais profunda simpatia que por toda a parte as massas sentem por uma táctica verdadeiramente revolucionária) tornou-se bolchevismo mundial, deu uma ideia, uma teoria, um programa, uma táctica, que se distinguem concretamente, na prática, do social-chauvinismo e do social-pacifismo. O bolchevismo aplicou o golpe de misericórdia na velha e apodrecida Internacional dos Scheidemann e dos Kautsky, dos Renaudel e dos Longuet, dos Henderson e dos Mac-Donald, que agora se atropelarão uns aos outros, sonhando com a «unidade» e tentando ressuscitar um cadáver. O bolchevismo criou as bases ideológicas e tácticas da III Internacional, verdadeiramente proletária e comunista, que tem em conta tanto as conquistas da época de paz como a experiência da época de revoluções que começou.
O bolchevismo popularizou em todo o mundo a ideia da «ditadura do proletariado», traduziu estas palavras primeiro do latim para o russo e depois para todas as línguas do mundo, mostrando com o exemplo do Poder Soviético que os operários e os camponeses pobres, mesmo num país atrasado, mesmo os menos experientes, instruídos e habituados à organização, foram capazes durante um ano inteiro, no meio de gigantescas dificuldades, em luta contra os exploradores (que eram apoiados pela burguesia de todo o mundo), de conservar o poder dos trabalhadores, de criar uma democracia infinitamente mais elevada e mais ampla do que todas as democracias anteriores no mundo, de iniciar o trabalho criador de dezenas de milhões de operários e camponeses para a realização prática do socialismo.
O bolchevismo ajudou de facto tão poderosamente o desenvolvimento da revolução proletária na Europa e na América como nenhum outro partido em nenhum outro país conseguiu até agora ajudar. Ao mesmo tempo que para os operários de todo o mundo se torna cada dia mais claro que a táctica dos Scheidemann e dos Kautsky não os livrou da guerra imperialista nem da escravidão assalariada sob a burguesia imperialista, que esta táctica não serve de modelo para todos os países — torna-se cada dia mais claro para as massas de proletários de todos os países que o bolchevismo indicou o caminho seguro para a salvação dos horrores da guerra e do imperialismo, que o bolchevismo serve de modelo de táctica para todos.
A revolução proletária, não só de toda a Europa, mas mundial, amadurece à vista de todos, e a vitória do proletariado na Rússia ajudou-a, acelerou-a e apoiou-a. Tudo isto é pouco para a vitória completa do socialismo? Naturalmente que é pouco. Um único país não pode fazer mais. Mas este único país, graças ao Poder Soviético, fez contudo tanto que, mesmo se amanhã o Poder Soviético russo fosse esmagado pelo imperialismo mundial, suponhamos, por meio de um entendimento entre o imperialismo alemão, e 0 anglo-francês, mesmo neste caso, o pior dos piores, a táctica bolchevique teria prestado um enorme serviço ao socialismo e teria apoiado o crescimento da invencível revolução mundial.

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