Como já indiquei, privar a burguesia do direito de voto não constitui um traço obrigatório e indispensável da ditadura do proletariado. Também na Rússia, os bolcheviques, que muito antes de Outubro tinham proclamado a palavra de ordem dessa ditadura, não falavam de antemão de privar os exploradores do direito de voto. Esta parte integrante da ditadura não apareceu «de acordo com um plano» de nenhum partido, mas surgiu por si mesma no decorrer da luta. Evidentemente, o historiador Kautsky não notou isso. Não compreendeu que a burguesia, ainda durante a dominação dos mencheviques (partidários da conciliação com a burguesia) nos Sovietes, se separou ela própria dos Sovietes, boicotou-os, opunha-se-lhes, intrigava contra eles. Os Sovietes surgiram sem qualquer Constituição e viveram durante mais de um ano (desde a Primavera de 1917 até ao Verão de 1918) sem Constituição alguma. A fúria da burguesia contra a organização independente e omnipotente (porque abrangia a todos) dos oprimidos, a luta — a luta mais desavergonhada, mais egoísta e mais suja — da burguesia contra os Sovietes e, enfim, a participação manifesta da burguesia (desde os democratas-constitucionalistas até aos socialistas-revolucionários de direita, desde Miliukov até Kérenski) na kornilovada[N42], tudo isso preparou a exclusão formal da burguesia dos Sovietes.
Kautsky ouviu falar da kornilovada, mas cospe majestosamente sobre os factos históricos, sobre o curso e as formas da luta, que determinam as formas da ditadura: com efeito, que têm os factos com isto, uma vez que se trata da democracia «pura»? A «crítica» de Kautsky, dirigida contra a retirada do direito de voto à burguesia, distingue-se por isso por uma tal . . . ingenuidade adocicada que seria enternecedora se viesse de uma criança e que provoca nojo quando vem de uma pessoa que ainda não foi oficialmente declarada débil mental.
«. . . Se os capitalistas, com o sufrágio universal, se encontrassem numa insignificante minoria, ter-se-iam reconciliado mais rapidamente com o seu destino» (33) . . . Não é na verdade encantador? O inteligente Kautsky viu muitas vezes na história, e em geral conhece muito bem pela observação da vida real, latifundiários e capitalistas que respeitam a vontade da maioria dos oprimidos. O inteligente Kautsky mantém-se firme no ponto de vista da «oposição», isto é, no ponto de vista da luta intraparlamentar. Assim o escreve textualmente: «oposição» (p. 34 e muitas outras).
Oh, douto historiador e político! Não lhe faria mal saber que «oposição» é um conceito de luta pacífica e exclusivamente parlamentar, isto é, um conceito que corresponde a uma situação não revolucionária, um conceito que corresponde à ausência de revolução. Na revolução encontramo-nos perante um inimigo implacável na guerra civil; nenhumas jeremiadas reaccionárias de pequeno burguês, que receia essa guerra como a receia Kautsky, modificará este facto. Considerar do ponto de vista da «oposição» as questões duma guerra civil implacável quando a burguesia não recua perante nenhum crime — o exemplo dos versalheses[N43] e do seu conluio com Bismarck diz alguma coisa a quem não trata a história como o Petruchka[N44] de Gógol —, quando a burguesia chama em seu auxílio Estados estrangeiros e intriga com eles contra a revolução — isto é cómico. À semelhança do «conselheiro da confusão» Kautsky, o proletariado revolucionário deve pôr o barrete de dormir e considerar a burguesia, que organiza as insurreições contra-revolucionárias de Dútov, de Krasnov e dos checos[N45], que paga milhões aos sabotadores, considerá-la como «oposição» legal. Oh, profundidade de pensamento!
A Kautsky interessa exclusivamente o lado formal e jurídico da questão, de modo que ao ler as suas dissertações sobre a Constituição soviética lembramo-nos involuntariamente das palavras de Bebel: os juristas são gente reaccionária até à medula.
«Na realidade — escreve Kautsky — não se pode privar de direitos apenas os capitalistas. Quem é um capitalista no sentido jurídico? Um homem que possui bens? Mesmo num país que foi tão longe na via do progresso económico como a Alemanha, cujo proletariado é tão numeroso, a implantação de uma república soviética privaria de direitos políticos grandes massas. Em 1907, no Império Alemão o número de pessoas (e das suas famílias) ocupadas nos três grandes grupos — agricultura, indústria e comércio — era de cerca de 35 milhões no grupo dos empregados e operários assalariados e de 17 milhões no grupo dos independentes. Portanto, um partido pode muito bem ser maioria entre os operários assalariados, mas minoria entre a população» (p. 33).
Eis um exemplozinho dos raciocínios de Kautsky. Não é isto uma lamentação contra-revolucionária de burguês ? Porque é que você, senhor Kautsky, incluiu todos os «independentes» na categoria de pessoas desprovidas de direitos, quando sabe muito bem que a imensa maioria dos camponeses russos não empregam operários assalariados e portanto não são privados de direitos? Não é isto uma falsificação?
Porque é que você, douto economista, não citou dados que conhece perfeitamente e que figuram na mesma estatística alemã de 1907 sobre o trabalho assalariado na agricultura por grupos de explorações? Porque não mostrou aos operários alemães leitores da sua brochura estes dados a partir dos quais se veria quantos exploradores, quão poucos exploradores há entre o total dos «proprietários rurais» segundo a estatística alemã?
Porque a sua renegação fez de você um simples sicofanta da burguesia.
O capitalista, não é verdade, é um conceito jurídico impreciso, e Kautsky dedica umas quantas páginas a fulminar a «arbitrariedade» da Constituição soviética. Este «sério letrado» permite à burguesia inglesa elaborar e aperfeiçoar durante séculos uma Constituição burguesa nova (nova para a Idade Média), mas a nós, operários e camponeses da Rússia, este representante duma ciência servil não dá nenhum prazo. A nós exige-nos uma Constituição elaborada até ao mínimo pormenor em alguns meses . . .
. . .«Arbitrariedade»! Imaginai apenas que abismo do mais sujo servilismo perante a burguesia, de pedantismo mais obtuso se revela em semelhante censura. Quando os juristas dos países capitalistas, burgueses até à medula e na sua maioria reaccionários, elaboraram durante séculos ou decénios as mais pormenorizadas regras, escreveram dezenas e centenas de volumes de leis e comentários às leis para oprimir o operário, para atar de pés e mãos o pobre, para opor mil argúcias e obstáculos a qualquer simples trabalhador do povo, ah, então os liberais burgueses e o senhor Kautsky não vêem aqui «arbitrariedade»! Aqui há «ordem» e «legalidade»! Aqui tudo está meditado e prescrito para «espremer» o mais possível o pobre. Aqui há milhares de advogados e de funcionários burgueses (dos quais Kautsky em geral nada diz, por certo precisamente porque Marx concedia uma enorme importância à destruição da máquina burocrática. . .); advogados e funcionários que sabem interpretar as leis de maneira que o operário e o camponês médio não consigam nunca atravessar a barreira de arame farpado destas leis. Isto não é «arbitrariedade» da burguesia, isto não é uma ditadura de exploradores egoístas e sórdidos, cheios do sangue do povo, nada disso. É a «democracia pura», que cada dia se torna mais e mais pura.
Mas quando as classes trabalhadoras e exploradas, isoladas dos seus irmãos estrangeiros pela guerra imperialista, criaram pela primeira vez na história os seus Sovietes, chamaram à edificação política as massas que a burguesia oprimia, embrutecia e esmagava, e começaram a construir elas próprias um Estado novo, proletário, e começaram no ardor duma luta encarniçada, no fogo da guerra civil, a esboçar os princípios fundamentais dum Estado sem exploradores, então todos os canalhas da burguesia, todo o bando de vampiros, com o seu acólito Kautsky, clamam contra a «arbitrariedade»! Com efeito, como podem esses ignorantes, esses operários e camponeses, essa «populaça», interpretar as suas leis? Onde vão adquirir o sentido da justiça esses simples trabalhadores, sem os conselhos dos cultos advogados, dos escritores burgueses, dos Kautsky e dos sábios funcionários de antigamente?
O senhor Kautsky cita as seguintes palavras do meu discurso de 28.IV.1918[N46]:
«. . . As próprias massas determinam a ordem e o prazo das eleições . . .»
E o «democrata puro» Kautsky conclui:
«. . . Consequentemente, pelos vistos, cada assembleia de eleitores pode estabelecer como lhe agradar a ordem das eleições. A arbitrariedade e a possibilidade de se desembaraçar dos elementos de oposição incómodos no seio do próprio proletariado, seriam deste modo conduzidos ao extremo» (p. 37).
Em que se distingue isto dos discursos de um coolie da pena contratado pelos capitalistas, que vocifera porque numa greve a massa oprime os operários zelosos que «desejam trabalhar»? Porque é que não é arbitrariedade que os funcionários burgueses determinem a ordem das eleições na «pura» democracia burguesa? Porque é que o sentido de justiça das massas que se levantaram para a luta contra os seus exploradores seculares das massas que são instruídas e temperadas por esta luta desesperada, há-de ser inferior ao de um punhado de funcionários, intelectuais e advogados educados nos preconceitos burgueses?
Kautsky é um verdadeiro socialista, não ouseis pôr em dúvida a sinceridade deste respeitabilíssimo pai de família, deste honradíssimo cidadão. Ele é um partidário ardente e convicto da vitória dos operários, da revolução proletária. Só quereria que primeiro, antes do movimento das massas, antes da sua luta encarniçada contra os exploradores, e sobretudo sem guerra civil, os melífluos intelectuais pequeno-burgueses e filisteus, com barrete de dormir, estabelecessem uns moderados e precisos estatutos do desenvolvimento da revolução. . .
É com profunda revolta moral que o nosso doutíssimo Judaszinho Golovliov[N47] conta aos operários alemães que em 14.VI.1918 o CEC dos Sovietes de toda a Rússia decidiu expulsar dos Sovietes os representantes dos partidos dos socialistas-revolucionários de direita dos mencheviques[N48]. «Esta medida — escreve o Judaszinho Kautsky, ardendo de nobre indignação — não é dirigida contra determinadas pessoas, que cometeram determinados actos puníveis. . . A Constituição da República Soviética não diz uma única palavra sobre a imunidade dos deputados aos Sovietes. Não são determinadas pessoas, mas determinados partidos que aqui são expulsos dos Sovietes» (p. 37).
Sim, isto é com efeito horrível, é um desvio intolerável da democracia pura, segundo as regras da qual o nosso revolucionário Judaszinho Kautsky fará a revolução. Nós, os bolcheviques russos, devíamos ter começado por prometer a imunidade aos Sávinkov e C.a, aos Liberdan[N49] e aos Potréssov (os «activistas»[N50]) e C.a, e depois escrever um código penal declarando «punível» a participação na guerra contra-revolucionária dos checoslovacos, ou a aliança com os imperialistas alemães na Ucrânia ou na Geórgia contra os operários do seu país, e só depois, na base deste código penal, teríamos o direito, de acordo com a «democracia pura», de expulsar dos Sovietes «determinadas pessoas». É evidente que os checoslovacos, que recebem dinheiro dos capitalistas anglo-franceses por intermédio dos Sávinkov, Potréssov e Liberdan (ou com a ajuda da sua agitação), tal como os Krasnov, que receberam obuses dos alemães por intermédio dos mencheviques da Ucrânia e de Tíflis, teriam esperado pacificamente que nós tivéssemos redigido o nosso código penal na devida forma e, como os mais puros democratas, ter-se-iam limitado a um papel de «oposição» . . .
Provoca em Kautsky não menos forte indignação moral o facto de que a Constituição Soviética priva do direito de voto aqueles que «empregam operários assalariados com objectivos de lucro». «Um trabalhador que trabalha em casa ou um pequeno patrão com um aprendiz — escreve Kautsky —, pode viver e sentir como um verdadeiro proletário, mas não tem o direito de votar» (p. 36).
Que desvio da «democracia pura»! Que injustiça! É verdade que até agora todos os marxistas supunham, e milhares de factos confirmavam, que os pequenos patrões são os mais desavergonhados e mesquinhos exploradores dos operários assalariados, mas o Judaszinho Kautsky não toma, evidentemente, naturalmente, a classe dos pequenos patrões (quem terá imaginado a perniciosa teoria da luta de classes?), mas indivíduos, exploradores que «vivem e sentem como verdadeiros proletários». A famosa «poupada Agnes», que se julgava morta desde há muito, ressuscitou sob a pena de Kautsky. Esta poupada Agnes foi inventada e lançada na literatura alemã há algumas décadas por um democrata «puro», o burguês Eugen Richter. Ele profetizou males indizíveis em consequência da ditadura do proletariado, da confiscação do capital aos exploradores, e perguntou com ar inocente quem era um capitalista no sentido jurídico. Citava o exemplo de uma costureira pobre e poupada (a «poupada Agnes»), à qual os malvados «ditadores do proletariado» arrebatam até ao último centavo. Houve tempo em que toda a social-democracia alemã se divertiu com esta «poupada Agnes» do democrata puro Eugen Richter. Mas isto foi há muito, muito tempo, quando ainda vivia Bebel e dizia aberta e directamente esta verdade: no nosso partido há muitos nacionais-liberais[N51], isto foi há muito tempo, quando Kautsky ainda não era um renegado.
Agora a «poupada Agnes» ressuscitou na pessoa do «pequeno patrão com um aprendiz que vive e sente como um verdadeiro proletário». Os malvados bolcheviques ofendem-no, privam-no do direito de voto. É verdade que «cada assembleia eleitoral», como diz o mesmo Kautsky, pode na República Soviética admitir em si um pobre artesão ligado, suponhamos, a uma dada fábrica, se por excepção ele não é um explorador, se na realidade «vive e sente como um verdadeiro proletário». Mas podemos nós confiar no conhecimento da vida, no sentido de justiça duma assembleia de simples operários de uma fábrica, sem ordem e que actua (que horror!) sem estatutos? Não é evidente que vale mais dar o direito de voto a todos os exploradores, a todos aqueles que empregam operários assalariados, do que correr o risco de que ofendam a «poupada Agnes» e o «pequeno artesão que vive e sente como um proletário»?
* * *
Que os desprezíveis canalhas renegados, aplaudidos pela burguesia e pelos sociais-chauvinistas(1*), insultem a nossa Constituição Soviética porque ela retira aos exploradores o direito de voto. Óptimo, porque isto acelerará e aprofundará a cisão entre os operários revolucionários da Europa, e os Scheidemann e Kautsky, Renaudel e Longuet, Henderson e Ramsay MacDonald, os velhos chefes e velhos traidores do socialismo.
As massas das classes oprimidas, os chefes conscientes e honestos dos proletários revolucionários estarão por nós. Bastará dar a conhecer a estes proletários e a estas massas a nossa Constituição Soviética para que eles digam imediatamente: estes são verdadeiramente gente nossa, este é um verdadeiro partido operário, um verdadeiro governo operário. Porque ele não engana os operários com falatório sobre reformas, como nos enganaram todos os chefes mencionados, mas luta seriamente contra os exploradores, realiza seriamente a revolução, luta de facto pela plena emancipação dos operários.
Se os Sovietes, depois de um ano de «prática» dos Sovietes, privaram os exploradores do direito de voto, isto quer dizer que estes Sovietes são de facto organizações das massas oprimidas, e não dos sociais-imperialistas nem dos sociais-pacifistas vendidos à burguesia. Se estes Sovietes retiraram aos exploradores o direito de voto, isto quer dizer que os Sovietes não são órgãos de conciliação pequeno-burguesa com os capitalistas, não são órgãos de charlatanice parlamentar (dos Kautsky, Longuet e MacDonald), mas órgãos do proletariado verdadeiramente revolucionário, que conduz uma luta de vida ou de morte contra os exploradores.
«O livro de Kautsky é aqui quase desconhecido», escreveu-me de Berlim há dias (hoje estamos a 30.X) um camarada bem informado. Eu aconselharia os nossos embaixadores na Alemanha e na Suíça a que não poupassem milhares para comprar esse livro e distribuí-lo gratuitamente aos operários conscientes para enterrar na lama a social-democracia «europeia» — leia-se imperialista e reformista —, que há muito se tornou um «cadáver mal cheiroso».
* * *
No final do seu livro, nas pp. 61 e 63, o senhor Kautsky deplora amargamente que «a nova teoria» (como ele chama ao bolchevismo, receando abordar a análise que Marx e Engels fizeram da Comuna de Paris) «encontre partidários mesmo em velhas democracias como, por exemplo, a Suíça». «É incompreensível», para Kautsky, «que os sociais-democratas alemães aceitem esta teoria».
Não, isto é plenamente compreensível, porque depois das sérias lições da guerra, tanto os Scheidemann como os Kautsky se tornaram repugnantes para as massas revolucionárias.
«Nós» sempre fomos pela democracia — escreve Kautsky —, e vamos de repente renunciar a ela?
«Nós», os oportunistas da social-democracia, sempre fomos contra a ditadura do proletariado, e os Kolb e C.a disseram-no abertamente há muito tempo. Kautsky sabe-o, e pensa em vão que conseguirá ocultar aos leitores o facto evidente do seu «regresso ao seio» dos Bernstein e dos Kolb.
«Nós», os marxistas revolucionários, nunca fizemos da democracia «pura» (burguesa) um ídolo. Plekhánov era em 1903, como é sabido, um marxista revolucionário (antes da sua triste viragem, que o conduziu à posição de um Scheidemann russo). E Plekhánov disse então, no congresso do partido em que foi adoptado o programa, que na revolução o proletarido, se fosse necessário, privaria do direito de voto os capitalistas, dissolveria qualquer parlamento, se este se revelasse contra-revolucionário[N55]. Que este é precisamente o único ponto de vista que corresponde ao marxismo, qualquer pessoa o verá, nem que seja só peias declarações de Marx e Engels que citei atrás. Isso decorre com plena evidência de todas as bases do marxismo.
«Nós», os marxistas revolucionários, não fizemos ao povo discursos como os que gostavam de pronunciar os kautskistas de todas as nações nas suas funções de lacaios da burguesia, adaptando-se ao parlamentarismo burguês, silenciando o carácter burguês da democracia contemporânea e exigindo apenas a sua ampliação, a sua realização até ao fim.
«Nós» dissemos à burguesia: vós, exploradores e hipócritas, falais de democracia e ao mesmo tempo levantais a cada passo milhares de obstáculos à participação das massas oprimidas na vida política. Pegamo-vos na palavra e exigimos, no interesse destas massas, o alargamento da vossa democracia burguesa, a fim de preparar as massas para a revolução para vos derrubar a vós, exploradores. E se vós, exploradores, oferecerdes resistência à nossa revolução proletária, reprimir-vos-emos implacavelmente, retirar-vos-emos os direitos e mais do que isso, não vos daremos pão, porque na nossa república proletária os exploradores não terão direitos, serão privados do fogo e da água, porque somos socialistas a sério e não à Scheidemann ou àKautsky.
É assim que temos falado e que falaremos, «nós», os marxistas revolucionários, e é por isso que as massas oprimidas estarão por nós e connosco, e os Scheidemann e os Kautsky irão parar à lixeira dos renegados.
Kautsky ouviu falar da kornilovada, mas cospe majestosamente sobre os factos históricos, sobre o curso e as formas da luta, que determinam as formas da ditadura: com efeito, que têm os factos com isto, uma vez que se trata da democracia «pura»? A «crítica» de Kautsky, dirigida contra a retirada do direito de voto à burguesia, distingue-se por isso por uma tal . . . ingenuidade adocicada que seria enternecedora se viesse de uma criança e que provoca nojo quando vem de uma pessoa que ainda não foi oficialmente declarada débil mental.
«. . . Se os capitalistas, com o sufrágio universal, se encontrassem numa insignificante minoria, ter-se-iam reconciliado mais rapidamente com o seu destino» (33) . . . Não é na verdade encantador? O inteligente Kautsky viu muitas vezes na história, e em geral conhece muito bem pela observação da vida real, latifundiários e capitalistas que respeitam a vontade da maioria dos oprimidos. O inteligente Kautsky mantém-se firme no ponto de vista da «oposição», isto é, no ponto de vista da luta intraparlamentar. Assim o escreve textualmente: «oposição» (p. 34 e muitas outras).
Oh, douto historiador e político! Não lhe faria mal saber que «oposição» é um conceito de luta pacífica e exclusivamente parlamentar, isto é, um conceito que corresponde a uma situação não revolucionária, um conceito que corresponde à ausência de revolução. Na revolução encontramo-nos perante um inimigo implacável na guerra civil; nenhumas jeremiadas reaccionárias de pequeno burguês, que receia essa guerra como a receia Kautsky, modificará este facto. Considerar do ponto de vista da «oposição» as questões duma guerra civil implacável quando a burguesia não recua perante nenhum crime — o exemplo dos versalheses[N43] e do seu conluio com Bismarck diz alguma coisa a quem não trata a história como o Petruchka[N44] de Gógol —, quando a burguesia chama em seu auxílio Estados estrangeiros e intriga com eles contra a revolução — isto é cómico. À semelhança do «conselheiro da confusão» Kautsky, o proletariado revolucionário deve pôr o barrete de dormir e considerar a burguesia, que organiza as insurreições contra-revolucionárias de Dútov, de Krasnov e dos checos[N45], que paga milhões aos sabotadores, considerá-la como «oposição» legal. Oh, profundidade de pensamento!
A Kautsky interessa exclusivamente o lado formal e jurídico da questão, de modo que ao ler as suas dissertações sobre a Constituição soviética lembramo-nos involuntariamente das palavras de Bebel: os juristas são gente reaccionária até à medula.
«Na realidade — escreve Kautsky — não se pode privar de direitos apenas os capitalistas. Quem é um capitalista no sentido jurídico? Um homem que possui bens? Mesmo num país que foi tão longe na via do progresso económico como a Alemanha, cujo proletariado é tão numeroso, a implantação de uma república soviética privaria de direitos políticos grandes massas. Em 1907, no Império Alemão o número de pessoas (e das suas famílias) ocupadas nos três grandes grupos — agricultura, indústria e comércio — era de cerca de 35 milhões no grupo dos empregados e operários assalariados e de 17 milhões no grupo dos independentes. Portanto, um partido pode muito bem ser maioria entre os operários assalariados, mas minoria entre a população» (p. 33).
Eis um exemplozinho dos raciocínios de Kautsky. Não é isto uma lamentação contra-revolucionária de burguês ? Porque é que você, senhor Kautsky, incluiu todos os «independentes» na categoria de pessoas desprovidas de direitos, quando sabe muito bem que a imensa maioria dos camponeses russos não empregam operários assalariados e portanto não são privados de direitos? Não é isto uma falsificação?
Porque é que você, douto economista, não citou dados que conhece perfeitamente e que figuram na mesma estatística alemã de 1907 sobre o trabalho assalariado na agricultura por grupos de explorações? Porque não mostrou aos operários alemães leitores da sua brochura estes dados a partir dos quais se veria quantos exploradores, quão poucos exploradores há entre o total dos «proprietários rurais» segundo a estatística alemã?
Porque a sua renegação fez de você um simples sicofanta da burguesia.
O capitalista, não é verdade, é um conceito jurídico impreciso, e Kautsky dedica umas quantas páginas a fulminar a «arbitrariedade» da Constituição soviética. Este «sério letrado» permite à burguesia inglesa elaborar e aperfeiçoar durante séculos uma Constituição burguesa nova (nova para a Idade Média), mas a nós, operários e camponeses da Rússia, este representante duma ciência servil não dá nenhum prazo. A nós exige-nos uma Constituição elaborada até ao mínimo pormenor em alguns meses . . .
. . .«Arbitrariedade»! Imaginai apenas que abismo do mais sujo servilismo perante a burguesia, de pedantismo mais obtuso se revela em semelhante censura. Quando os juristas dos países capitalistas, burgueses até à medula e na sua maioria reaccionários, elaboraram durante séculos ou decénios as mais pormenorizadas regras, escreveram dezenas e centenas de volumes de leis e comentários às leis para oprimir o operário, para atar de pés e mãos o pobre, para opor mil argúcias e obstáculos a qualquer simples trabalhador do povo, ah, então os liberais burgueses e o senhor Kautsky não vêem aqui «arbitrariedade»! Aqui há «ordem» e «legalidade»! Aqui tudo está meditado e prescrito para «espremer» o mais possível o pobre. Aqui há milhares de advogados e de funcionários burgueses (dos quais Kautsky em geral nada diz, por certo precisamente porque Marx concedia uma enorme importância à destruição da máquina burocrática. . .); advogados e funcionários que sabem interpretar as leis de maneira que o operário e o camponês médio não consigam nunca atravessar a barreira de arame farpado destas leis. Isto não é «arbitrariedade» da burguesia, isto não é uma ditadura de exploradores egoístas e sórdidos, cheios do sangue do povo, nada disso. É a «democracia pura», que cada dia se torna mais e mais pura.
Mas quando as classes trabalhadoras e exploradas, isoladas dos seus irmãos estrangeiros pela guerra imperialista, criaram pela primeira vez na história os seus Sovietes, chamaram à edificação política as massas que a burguesia oprimia, embrutecia e esmagava, e começaram a construir elas próprias um Estado novo, proletário, e começaram no ardor duma luta encarniçada, no fogo da guerra civil, a esboçar os princípios fundamentais dum Estado sem exploradores, então todos os canalhas da burguesia, todo o bando de vampiros, com o seu acólito Kautsky, clamam contra a «arbitrariedade»! Com efeito, como podem esses ignorantes, esses operários e camponeses, essa «populaça», interpretar as suas leis? Onde vão adquirir o sentido da justiça esses simples trabalhadores, sem os conselhos dos cultos advogados, dos escritores burgueses, dos Kautsky e dos sábios funcionários de antigamente?
O senhor Kautsky cita as seguintes palavras do meu discurso de 28.IV.1918[N46]:
«. . . As próprias massas determinam a ordem e o prazo das eleições . . .»
E o «democrata puro» Kautsky conclui:
«. . . Consequentemente, pelos vistos, cada assembleia de eleitores pode estabelecer como lhe agradar a ordem das eleições. A arbitrariedade e a possibilidade de se desembaraçar dos elementos de oposição incómodos no seio do próprio proletariado, seriam deste modo conduzidos ao extremo» (p. 37).
Em que se distingue isto dos discursos de um coolie da pena contratado pelos capitalistas, que vocifera porque numa greve a massa oprime os operários zelosos que «desejam trabalhar»? Porque é que não é arbitrariedade que os funcionários burgueses determinem a ordem das eleições na «pura» democracia burguesa? Porque é que o sentido de justiça das massas que se levantaram para a luta contra os seus exploradores seculares das massas que são instruídas e temperadas por esta luta desesperada, há-de ser inferior ao de um punhado de funcionários, intelectuais e advogados educados nos preconceitos burgueses?
Kautsky é um verdadeiro socialista, não ouseis pôr em dúvida a sinceridade deste respeitabilíssimo pai de família, deste honradíssimo cidadão. Ele é um partidário ardente e convicto da vitória dos operários, da revolução proletária. Só quereria que primeiro, antes do movimento das massas, antes da sua luta encarniçada contra os exploradores, e sobretudo sem guerra civil, os melífluos intelectuais pequeno-burgueses e filisteus, com barrete de dormir, estabelecessem uns moderados e precisos estatutos do desenvolvimento da revolução. . .
É com profunda revolta moral que o nosso doutíssimo Judaszinho Golovliov[N47] conta aos operários alemães que em 14.VI.1918 o CEC dos Sovietes de toda a Rússia decidiu expulsar dos Sovietes os representantes dos partidos dos socialistas-revolucionários de direita dos mencheviques[N48]. «Esta medida — escreve o Judaszinho Kautsky, ardendo de nobre indignação — não é dirigida contra determinadas pessoas, que cometeram determinados actos puníveis. . . A Constituição da República Soviética não diz uma única palavra sobre a imunidade dos deputados aos Sovietes. Não são determinadas pessoas, mas determinados partidos que aqui são expulsos dos Sovietes» (p. 37).
Sim, isto é com efeito horrível, é um desvio intolerável da democracia pura, segundo as regras da qual o nosso revolucionário Judaszinho Kautsky fará a revolução. Nós, os bolcheviques russos, devíamos ter começado por prometer a imunidade aos Sávinkov e C.a, aos Liberdan[N49] e aos Potréssov (os «activistas»[N50]) e C.a, e depois escrever um código penal declarando «punível» a participação na guerra contra-revolucionária dos checoslovacos, ou a aliança com os imperialistas alemães na Ucrânia ou na Geórgia contra os operários do seu país, e só depois, na base deste código penal, teríamos o direito, de acordo com a «democracia pura», de expulsar dos Sovietes «determinadas pessoas». É evidente que os checoslovacos, que recebem dinheiro dos capitalistas anglo-franceses por intermédio dos Sávinkov, Potréssov e Liberdan (ou com a ajuda da sua agitação), tal como os Krasnov, que receberam obuses dos alemães por intermédio dos mencheviques da Ucrânia e de Tíflis, teriam esperado pacificamente que nós tivéssemos redigido o nosso código penal na devida forma e, como os mais puros democratas, ter-se-iam limitado a um papel de «oposição» . . .
Provoca em Kautsky não menos forte indignação moral o facto de que a Constituição Soviética priva do direito de voto aqueles que «empregam operários assalariados com objectivos de lucro». «Um trabalhador que trabalha em casa ou um pequeno patrão com um aprendiz — escreve Kautsky —, pode viver e sentir como um verdadeiro proletário, mas não tem o direito de votar» (p. 36).
Que desvio da «democracia pura»! Que injustiça! É verdade que até agora todos os marxistas supunham, e milhares de factos confirmavam, que os pequenos patrões são os mais desavergonhados e mesquinhos exploradores dos operários assalariados, mas o Judaszinho Kautsky não toma, evidentemente, naturalmente, a classe dos pequenos patrões (quem terá imaginado a perniciosa teoria da luta de classes?), mas indivíduos, exploradores que «vivem e sentem como verdadeiros proletários». A famosa «poupada Agnes», que se julgava morta desde há muito, ressuscitou sob a pena de Kautsky. Esta poupada Agnes foi inventada e lançada na literatura alemã há algumas décadas por um democrata «puro», o burguês Eugen Richter. Ele profetizou males indizíveis em consequência da ditadura do proletariado, da confiscação do capital aos exploradores, e perguntou com ar inocente quem era um capitalista no sentido jurídico. Citava o exemplo de uma costureira pobre e poupada (a «poupada Agnes»), à qual os malvados «ditadores do proletariado» arrebatam até ao último centavo. Houve tempo em que toda a social-democracia alemã se divertiu com esta «poupada Agnes» do democrata puro Eugen Richter. Mas isto foi há muito, muito tempo, quando ainda vivia Bebel e dizia aberta e directamente esta verdade: no nosso partido há muitos nacionais-liberais[N51], isto foi há muito tempo, quando Kautsky ainda não era um renegado.
Agora a «poupada Agnes» ressuscitou na pessoa do «pequeno patrão com um aprendiz que vive e sente como um verdadeiro proletário». Os malvados bolcheviques ofendem-no, privam-no do direito de voto. É verdade que «cada assembleia eleitoral», como diz o mesmo Kautsky, pode na República Soviética admitir em si um pobre artesão ligado, suponhamos, a uma dada fábrica, se por excepção ele não é um explorador, se na realidade «vive e sente como um verdadeiro proletário». Mas podemos nós confiar no conhecimento da vida, no sentido de justiça duma assembleia de simples operários de uma fábrica, sem ordem e que actua (que horror!) sem estatutos? Não é evidente que vale mais dar o direito de voto a todos os exploradores, a todos aqueles que empregam operários assalariados, do que correr o risco de que ofendam a «poupada Agnes» e o «pequeno artesão que vive e sente como um proletário»?
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Que os desprezíveis canalhas renegados, aplaudidos pela burguesia e pelos sociais-chauvinistas(1*), insultem a nossa Constituição Soviética porque ela retira aos exploradores o direito de voto. Óptimo, porque isto acelerará e aprofundará a cisão entre os operários revolucionários da Europa, e os Scheidemann e Kautsky, Renaudel e Longuet, Henderson e Ramsay MacDonald, os velhos chefes e velhos traidores do socialismo.
As massas das classes oprimidas, os chefes conscientes e honestos dos proletários revolucionários estarão por nós. Bastará dar a conhecer a estes proletários e a estas massas a nossa Constituição Soviética para que eles digam imediatamente: estes são verdadeiramente gente nossa, este é um verdadeiro partido operário, um verdadeiro governo operário. Porque ele não engana os operários com falatório sobre reformas, como nos enganaram todos os chefes mencionados, mas luta seriamente contra os exploradores, realiza seriamente a revolução, luta de facto pela plena emancipação dos operários.
Se os Sovietes, depois de um ano de «prática» dos Sovietes, privaram os exploradores do direito de voto, isto quer dizer que estes Sovietes são de facto organizações das massas oprimidas, e não dos sociais-imperialistas nem dos sociais-pacifistas vendidos à burguesia. Se estes Sovietes retiraram aos exploradores o direito de voto, isto quer dizer que os Sovietes não são órgãos de conciliação pequeno-burguesa com os capitalistas, não são órgãos de charlatanice parlamentar (dos Kautsky, Longuet e MacDonald), mas órgãos do proletariado verdadeiramente revolucionário, que conduz uma luta de vida ou de morte contra os exploradores.
«O livro de Kautsky é aqui quase desconhecido», escreveu-me de Berlim há dias (hoje estamos a 30.X) um camarada bem informado. Eu aconselharia os nossos embaixadores na Alemanha e na Suíça a que não poupassem milhares para comprar esse livro e distribuí-lo gratuitamente aos operários conscientes para enterrar na lama a social-democracia «europeia» — leia-se imperialista e reformista —, que há muito se tornou um «cadáver mal cheiroso».
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No final do seu livro, nas pp. 61 e 63, o senhor Kautsky deplora amargamente que «a nova teoria» (como ele chama ao bolchevismo, receando abordar a análise que Marx e Engels fizeram da Comuna de Paris) «encontre partidários mesmo em velhas democracias como, por exemplo, a Suíça». «É incompreensível», para Kautsky, «que os sociais-democratas alemães aceitem esta teoria».
Não, isto é plenamente compreensível, porque depois das sérias lições da guerra, tanto os Scheidemann como os Kautsky se tornaram repugnantes para as massas revolucionárias.
«Nós» sempre fomos pela democracia — escreve Kautsky —, e vamos de repente renunciar a ela?
«Nós», os oportunistas da social-democracia, sempre fomos contra a ditadura do proletariado, e os Kolb e C.a disseram-no abertamente há muito tempo. Kautsky sabe-o, e pensa em vão que conseguirá ocultar aos leitores o facto evidente do seu «regresso ao seio» dos Bernstein e dos Kolb.
«Nós», os marxistas revolucionários, nunca fizemos da democracia «pura» (burguesa) um ídolo. Plekhánov era em 1903, como é sabido, um marxista revolucionário (antes da sua triste viragem, que o conduziu à posição de um Scheidemann russo). E Plekhánov disse então, no congresso do partido em que foi adoptado o programa, que na revolução o proletarido, se fosse necessário, privaria do direito de voto os capitalistas, dissolveria qualquer parlamento, se este se revelasse contra-revolucionário[N55]. Que este é precisamente o único ponto de vista que corresponde ao marxismo, qualquer pessoa o verá, nem que seja só peias declarações de Marx e Engels que citei atrás. Isso decorre com plena evidência de todas as bases do marxismo.
«Nós», os marxistas revolucionários, não fizemos ao povo discursos como os que gostavam de pronunciar os kautskistas de todas as nações nas suas funções de lacaios da burguesia, adaptando-se ao parlamentarismo burguês, silenciando o carácter burguês da democracia contemporânea e exigindo apenas a sua ampliação, a sua realização até ao fim.
«Nós» dissemos à burguesia: vós, exploradores e hipócritas, falais de democracia e ao mesmo tempo levantais a cada passo milhares de obstáculos à participação das massas oprimidas na vida política. Pegamo-vos na palavra e exigimos, no interesse destas massas, o alargamento da vossa democracia burguesa, a fim de preparar as massas para a revolução para vos derrubar a vós, exploradores. E se vós, exploradores, oferecerdes resistência à nossa revolução proletária, reprimir-vos-emos implacavelmente, retirar-vos-emos os direitos e mais do que isso, não vos daremos pão, porque na nossa república proletária os exploradores não terão direitos, serão privados do fogo e da água, porque somos socialistas a sério e não à Scheidemann ou àKautsky.
É assim que temos falado e que falaremos, «nós», os marxistas revolucionários, e é por isso que as massas oprimidas estarão por nós e connosco, e os Scheidemann e os Kautsky irão parar à lixeira dos renegados.
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